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18 de março de 2025
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Homilia de Dom Geovane Luís no Jubileu dos Presbíteros

Foi realizado na manhã desta terça-feira (18 de março de 2025) o Jubileu dos Presbíteros, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, uma das igrejas jubilares da Diocese de Divinópolis. Confira a homilia de Dom Geovane Luís da Silva:

Uma vida transfigurada pela presença de Deus

Ao início da Quaresma ressoou o convite de Jesus: Convertei-vos e crede no Evangelho! Nesta segunda semana do tempo quaresmal, contemplando a transfiguração do Senhor, gostaria de refletir sobre o significado deste mistério e sua realização na vida dos discípulos. Para tanto, evidenciarei uma figura que resume, melhor do que qualquer outra, o caminho de transfiguração que eles percorreram. Trata-se do apóstolo Pedro.

Nesta liturgia penitencial, o Mestre nos conduz ao interior de nós mesmos, “pois Ele quer evangelizadores que anunciem a Boa-Nova, não só com palavras, mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus” (EG 259).

Após revelar aos discípulos que sofreria a paixão e morte de cruz, Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para orar. Enquanto orava, o seu rosto se tornou brilhante como o sol e suas vestes brancas como a neve. Qual o significado desta cena evangélica? “A principal finalidade dessa transfiguração era afastar dos discípulos o escândalo da cruz”. Para encorajá-los, Jesus lhes oferece a visão antecipada da sua ressurreição, pois queriam alcançar a glória sem a cruz. Não é esta a lei da vida. Seria fácil demais alcançar a meta sem as exigências para conquistá-la. Toda meta humana exige empenho, esforço e sacrifício.

Chamados por amor

O evangelista nos diz que Jesus tomou consigo os discípulos. Não se trata de uma imposição, mas de um chamado livre. Jesus carrega no seu coração aqueles sobre os quais repousa o seu olhar, mesmo que não respondam ao seu convite ou se extraviem do caminho. Uma vez chamado para sempre amado.

A subida exigente à montanha precede o êxtase dos discípulos. No alto da montanha eles contemplam a glória de Cristo e não desejam mais descer ao vale da vida, pois têm a impressão de tocar o céu com um dedo. Querem ficar ali. O topo de uma montanha não foi feito para construir habitações; mas para ampliar o nosso horizonte, devolver-nos o respiro para podermos partir sempre de novo. E de fato Jesus os recoloca no caminho, os acompanha na descida.

O nosso ministério está radicado no mistério de Deus e somos apenas seus servidores (1Cor 4, 1). Ao sermos chamados, somos separados; retirados do meio povo; elevados, mas devolvidos ao povo para servi-lo com amor, sendo um reflexo da ternura divina.

A subida fadigosa ao monte é um convite para sermos peregrinos corajosos. Não existe a possibilidade de alcançar o topo do monte Tabor num helicóptero, mas é preciso desbravar o caminho.

A fé vive da mesma lógica: seria muito fácil crer em um Deus que nos levasse sempre ao alto num helicóptero, nos tirasse todo o cansaço do caminho e nos mostrasse sempre panoramas agradáveis; seria fácil demais aderir a um Deus que nos tratasse à base de milagres. O Deus cristão não nos transporta magicamente para o alto. Ele não eliminou a lei do empenho e do sacrifício para a meta, mas a interpretou com a sua própria vida. Fez-nos entender, abraçando a cruz como sinal supremo de amor, que a última palavra não é a morte, mas a ressurreição e que não existe pena sem consolação nem lágrima sem valor. Sendo assim, não importa a distância do caminho, nem o cansaço do sobe e desce da vida, mas o desejo de caminhar sempre na companhia do Mestre.

Onde quer que já tenhamos chegado, continuemos a caminhar. A vida se transfigura na peregrinação com suas decidas e subidas, seus percalços, sofrimentos e conquistas. E a peregrinação da vida, por vezes, mergulha na noite escura, mas não para aí; ela alcança a beleza de um novo amanhecer, ela continua dentro de cada um, seguindo rumos diferentes. O roteiro é toda a vida de cada pessoa.

Simão e Pedro

O caminho percorrido por Pedro nos convida à reflexão sobre nossa identidade batismal e presbiteral. Após se encontrar com Jesus, sua vida foi se transfigurando, a ponto de ter seu próprio nome mudado pelo Mestre. Diante das maravilhas proclamadas a seu respeito nos perguntamos: O que permanece de Simão em Pedro? Não nos esqueçamos de que Pedro, o homem das chaves, rocha firme sobre a qual Jesus edificou sua Igreja, primeiro foi Simão, um rude pescador.

O que permaneceu do Simão arrogante no Pedro da Igreja? Desapareceu o verdadeiro Simão e ficou somente Pedro? Ou teríamos que dizer que há uma coexistência de Simão em Pedro? A mesma pergunta vale para nós batizados e ordenados em Cristo Jesus. Há um antes e um depois ritmando nossa existência cristã e presbiteral. O Pedro, rocha firme, não deixa de ser o Simão do lago. Jesus mudou seu nome, no entanto, em diferentes ocasiões desperta o Simão que não consegue entender o Mestre e quer desviá-lo de seus planos (Mc 8,32).

Ao ser questionado por Jesus acerca da sua identidade, Pedro responde: “Tu és o Cristo de Deus” (Lc 9, 20). Mas ao ouvir o anúncio da sua paixão, Pedro, chamando-o à parte, começou a recriminá-lo. Jesus voltando-se e vendo seus discípulos, repreendeu a Pedro, dizendo: “Afasta-te de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens.” Permanece vivo o Simão que busca o triunfalismo messiânico de Jesus e resiste em seguir Aquele que será crucificado. Pedro vive um momento difícil, sente que em Jesus, o mistério de Deus lhe escapa.

Esta situação se resolve com um novo fato que enche de euforia o coração de Pedro: “Oito dias depois dessas palavras, tomando consigo a Pedro, João e Tiago, ele subiu à montanha para orar” (Lc 9,28). Aqui Pedro aparece generoso. Pensa em Jesus, em Moisés, em Elias; está preocupado com o bem estar do Mestre. Ao ver a glória de Cristo ele expressou o desejo de fazer ali três tendas, mas Ele coloca Jesus no mesmo nível das testemunhas que o ladeiam. A cada um, sua tenda. Jesus não ocupava ainda um lugar central e absoluto em seu coração. Dele se diz no evangelho: Pedro não sabia o que estava dizendo. Por vezes, Ele se mostra vítima de uma amnésia fatal, se esquece da sua pequenez e se propõe a salvar Jesus. Esquece-se de que na verdade é ele quem será redimido por Cristo. Eis aqui o drama de Pedro: confiar mais em si mesmo e resistir à revelação do Messias que doa sua vida para salvar o mundo.

Quando Jesus o levou consigo ao horto das oliveiras e revelou sua angústia e pavor diante da iminência de sua morte, Pedro não se manteve vigilante. Não conseguiu suportar a visão de Jesus fraco e nele começa a ruir o mito do Mestre todo poderoso. Emerge aqui o Simão entorpecido pelo sono diante da paixão de Jesus (Mc 14, 37).

Continua sendo o Simão que compete com os outros sobre a primazia no novo Reino, e crê que é ele quem vai dar a vida por Jesus. O Simão covarde e temeroso que nega a Jesus na noite da Paixão (Mc 14, 66-72) e diz que não estava com ele e não o conhecia.  No Evangelho Jesus deixa transparecer sua identidade através da confissão de Pedro: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29). Neste contexto (Mt 16, 13-20), Jesus desvela a identidade de Pedro: Tu és petros (pedregulho) e sobre esta petra (rocha) edificarei minha Igreja. Pedro se torna rocha firme quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira rocha).

Pedro, que era pedra de tropeço no caminho, frágil, limitado, foi sendo transformado, através da sua identificação com Jesus, em rocha firme da nova comunidade. O Simão, pedra frágil, se torna agora rocha firme, porque o Mestre desvelou sua beleza original, sua verdadeira identidade sobre a qual edificou a Igreja.

Deste modo podemos dizer que a questão não é apenas trocar de nome. A graça não destrói a natureza humana, mas a plenifica. Em Pedro, a graça do seguimento de Jesus não destrói Simão. A santidade não nos torna menos humanos, porque é o encontro da nossa fragilidade com a força da graça (EG 34). Carregaremos na mochila da vida a nossa história pessoal, a herança genética, os traços de personalidade, nossa estrutura psíquica e o nosso mundo afetivo.

É este o desafio que se impõe a cada um de nós: o que permanece de nossa herança biológica e cultural na experiência do seguimento de Jesus? É possível que em nós, como em “Pedro”, permaneça latente muito de “Simão”. E como distinguir o Simão de Pedro que carregamos dentro de nós? Não é fácil a Pedro desprender-se do Simão de antes. Só a identificação com Jesus possibilita fazer a travessia para o “novo nome”, integrando e pacificando as “marcas humanas” do antigo nome. Eis aqui um caminho de transfiguração. Em Jesus afirma-se a nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido no seu interior, que não se desfaz com as adversidades e crises. Dentro de nós habita o Mistério. Viver em profundidade significa entrar no âmago da própria vida, buscar o tesouro escondido, descer até às fontes do nosso ser, às suas raízes mais profundas e fazer a experiência de se deixar amar por Deus.

Deixar-se amar

Pedro se considerava um ajudante do perdão de Deus, pronto para seguir Jesus, servir os outros, mas não aceitava ser ele mesmo objeto da sua misericórdia. Ele atingirá sua maturidade apostólica sob o olhar amoroso de Jesus e será transfigurado pelo pranto. As lágrimas que nasceram no coração do Mestre, jorraram dos olhos de Pedro. Naquela hora Pedro reconhece quem de fato ele é, e no seu pranto há palavras muito simples: Senhor, eu também sou um pobre homem como todos, eu não imaginei que podia chegar a este ponto; tem compaixão de mim; Senhor, tu vais morrer por mim que não te fui fiel, que te traí.

O olhar de Jesus sobre Pedro não é acusador ou admoestador; mas um olhar misericordioso. E seu olhar diz muito ao apóstolo: Pedro, eu te amo também assim, eu sabia que eras assim e te amava sabendo que és assim.

“Pedro faz a experiência, que talvez seja a mais fácil e a mais difícil da vida, de deixar-se amar. Até agora orgulhava-se de ser o primeiro a fazer alguma coisa por Cristo e então compreende que diante de Deus não pode fazer outra coisa senão deixar-se amar, deixar-se salvar, deixar-se perdoar”. Somente depois deste longo percurso é que ele se tornará o primeiro evangelizador e confirmador dos irmãos na fé (Lc 22,32). Quando nos sentimos amados por Deus, encontramos a rocha firme, bem talhada e preciosa que existe no íntimo de nós. Então começamos a caminhar com segurança, superando com paciência as dificuldades. Confiando em si e na rocha do próprio ser, todas as forças vitais se acham disponíveis e nos fazem crescer, tornando-nos aquilo que desde sempre fomos chamados a ser.

As chaves da vida

Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar. Ter a chave da vida como Pedro ou como Simão: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão. Dar amplitude à vida e ao ministério ou atrofiá-los. Atar ou desatar os nós da vida. Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se: abrir-se à vida, ao amor que perdoa ou retrair-se ao próprio ego. Nossa identidade é sempre dinâmica, histórica e fecunda. Nossa vida é uma contínua travessia do Simão para Pedro, porque ela está centrada n’Aquele que tudo sustenta. Nossa identidade profunda está a serviço de quem? – do próprio “ego” como Simão, ou do Reino, como Pedro? Onde a graça de Deus tem liberdade de atuar, ali renasce sempre o espírito apostólico de Pedro atrofiado dentro de cada um de nós. O que tem prevalecido nas nossas relações cotidianas: o espírito de Simão ou de Pedro? Não obstante nossa pequenez, se nos deixarmos mover pela graça de Cristo seremos transfigurados, assumiremos um estilo de vida petrino e contribuiremos desde já na transfiguração da Igreja e do mundo.

Dom Geovane Luís da Silva

Bispo Diocesano – Divinópolis

Conceição do Pará 18/03/25

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