Sermão do Encontro
CATEDRAL DE MARIANA – 16/abril/2019
- Canto: Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão! E chegando a minha páscoa, vos amei até o fim, amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado! /// Bendita sejais, Senhora das Dores, ouvi nossos rogos, Mãe dos pecadores!
- Contexto litúrgico
- Quaresma e semana santa.
- Centralidade do tríduo pascal: a ceia na quinta, a paixão na sexta, a vigília pascal na noite do sábado, lançando-nos no alvorecer do domingo pascal.
- Na liturgia desta noite contemplamos o condenado a morrer: “Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado em aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Flp 2,6-8). “Tendo chegado a sua hora de passar deste mundo para o seu Pai, e tendo amado os seus que estavam no mundo, Jesus amou-os até o fim” (Jo 13,1).
- Estamos no caminho da cruz, na Via Crucis, na Via Sacra. É chegada a hora de Jesus! A hora da glorificação, segundo o Evangelho de João (“a hora de Jesus”)! A hora da cruz chegou!
- No domingo de ramos da paixão, entramos com Jesus em Jerusalém, no “hoje” da fé, na memória sempre viva da liturgia! Não repetimos aquele evento! Ele é único! No mistério da liturgia, estivemos lá com o Rei bendito, desejando sua paz que desce do céu! Gritamos, como os discípulos desta hora, e nos associamos aos discípulos da primeira hora: não nos calamos para que não sejam as pedras que gritem! Sabemos quem é Jesus! Reconhecemos sua obra, seus milagres, seu Reino!
- No hoje da sua paixão, vamos com ele, acompanhamos o cortejo, como Maria, como Madalena, como o discípulo amado! Acompanhamos o Cristo, Verbo de Deus, imerso no mistério da sua paixão, e acompanhamos aqueles nos quais esta mesma e única paixão se prolonga até que ele volte. A Cabeça do Corpo é Jesus, que sofreu e realizou sua paixão. O Corpo, cuja cabeça é Cristo, continua na paixão, pedindo a mesma presença solícita dos discípulos deste nosso tempo! A paixão de Cristo continua na paixão do mundo! As chagas permanecem abertas e jorrando sangue de muitas feridas, dores e cruzes, de muitas exclusões e descuidos. Descuidos dos discípulos do Senhor, descuidos dos poderes públicos e das políticas públicas. A paixão prossegue… E exige a mesma coragem dos discípulos, homens e mulheres, no acompanhamento do cortejo que continua, na assistência compassiva dos crucificados, dos desassistidos, dos condenados de cada tempo! Eis-nos aqui, contemplando o primeiro crucificado e nos comprometendo com os crucificados deste tempo! Vocês conseguem identifica-los? Tomara que sim. Senão olharemos chorosos para o Cristo-cabeça, que já viveu sua paixão e experimenta sua glória, e desprezaremos o Corpo ainda peregrino neste mundo e que padece e morre sem Marias, sem Madalenas, sem discípulos amados, sem Cirineus, sem Verônicas… Que nossos olhos contemplem o Corpo todo do Senhor, Cabeça e membros. Não só a cabeça que é Ele! Este Corpo tem membros e membros que sofrem! Sofrem hoje! Sofrem aqui! Entre vocês! Perto de mim e entre os meus!
- Vamos aprender de Jesus e da sua paixão:
- Na oração coleta do Domingo de Ramos rezamos: “… Concedei-nos aprender o ensinamento da sua paixão…” Na escola e no caminho de Jesus, há a paixão! Paixão dele e do seu corpo que é a Igreja! Paixão dele e do mundo! O que podemos aprender da paixão do Mestre? Somos aprendizes da paixão!
- Ele é o Mestre e excita nossos ouvidos, para que prestemos atenção como discípulos, lembra-nos o profeta Isaías (cf. Is 50,4b). Somos discípulos do Mestre que sofre!
- Ele é o “Servo Sofredor” (há 4 cânticos de um “Servo Sofredor” em Isaías [42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12]). Lemos, na segunda-feira santa, o primeiro cântico; na terça, lemos o segundo cântico; na quarta, o terceiro; na sexta da paixão, lemos o mais dramático e o mais impactante, o quarto cântico do Servo Sofredor. Esta é a imagem do Messias no Antigo Testamento que Jesus toma preferencialmente para si: a do servo que sofre (três anúncios da paixão segundo os sinóticos!).
- Somos aprendizes e somos discípulos! O que aprendemos com o Mestre na sua paixão? Quero indicar-vos três lições.
- As lições da paixão:
- Ter o Pai sempre presente pela via da oração! Por três vezes, Jesus invoca seu Pai, na hora da sua paixão!
- Solidarizar-nos com quem está na experiência do sofrimento! Na sua paixão, Jesus reza por Pedro, consola as mulheres, acolhe a fé do ladrão e o salva.
- Deixar-se ajudar por quem aprendeu a lição da compaixão! No seu caminho da paixão, Jesus abre lugar à compaixão de Maria, a mãe, de Simão de Cirene e de Verônica.
- Estas três lições nos ajudarão na “nossa hora” da paixão, do sofrimento e da morte! Estas três lições nos darão novos sentimentos para lidar com a paixão do mundo e do corpo místico de Jesus, que vive em continuada paixão, completando o que falta à paixão do Mestre (como pensava Paulo [Cl 1,24], que julgava completar na sua carne o que faltava à paixão do Senhor em favor do Corpo de Cristo que é a Igreja!).
- Vamos visitar o texto da paixão segundo Lucas (a que lemos neste ano, no domingo de ramos da paixão [22,14 – 23,56]) para aprender estas três lições.
- Ter o Pai sempre presente, também e sobretudo quando sofremos. Jesus, o Verbo de Deus, diante da experiência da paixão e da morte, também angustia-se, entristece, sente pavor e perturbação, sua como que gotas de sangue a ponto de receber consolação de um anjo do céu. Todos estes sentimentos estão nas páginas da paixão dos quatro evangelistas (Mt 26,37; Mc 14,33; Lc 22,43-44; Jo 12,27). Na paixão segundo Lucas e em todo o evangelho, Jesus é, por excelência, o Filho que ora! Por três vezes nos eventos da paixão, Jesus invoca o Pai, a quem sempre buscou e encontrou nos momentos orantes da sua vida e ministério: Jesus, no mistério e no tempo da sua paixão, invoca seu Pai por três vezes: 1) na agonia do horto [“Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua!”], 2) para pedir perdão pelos que não creem e o matam [Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!] e 3) para entregar seu espírito [Pai, em tuas mãos entrego meu espírito!”]. O mesmo Pai a quem rezou e ensinou a invocar como Pai Nosso, d’Ele e nosso! Jesus rezou, rezou sempre, rezou para entrar na paixão: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de sofrer.” A ceia pascal era uma oração, a mais importante dos judeus, rezou-a antes de sofrer e deu-lhe sentido novo, definitivo e eterno. Rezou antes de sofrer! O sofrimento humano é um enigma terrível e incompreensível. Do sofrimento humano ocupou-se a filosofia, a teologia, a mente humana mais simples e a mais evoluída! O sofrimento pode ser o lugar da descrença e do abandono de Deus e da fé, do desespero e da aflição, como pode ser o lugar do abandono nas mãos de Deus, do esvaziar-se a si mesmo (como Cristo segundo a palavra de Paulo) para encher-se da presença, do poder e da força salvadora de Deus! Vislumbrando a inteireza do mistério da morte de Cristo, entendemos o grito “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” não como um grito desesperado de quem perdeu a fé, mas o interpretamos como a dor crente de quem pede: “Meu Deus, meu Deus, não me deixeis sofrer sozinho! Não consigo sofrer sozinho! Não suporto sofrer sozinho!” Jesus quer seu Pai ainda mais perto de si, quer ouvi-lo e senti-lo para além de seu silêncio ativo. O Pai permanece silencioso diante da morte do seu Filho! Silencioso, mas ativo e amoroso! A ressurreição nos permite pensar assim!! Rezar, irmãos e irmãs, quando sofremos. Confiar-nos ao Pai, aos silêncios do Pai, aos cuidados silenciosos do Pai. Contudo, só rezaremos com confiança, perseverança e espírito filial quando chegar a dor, a cruz e a morte, se tivermos rezado o tempo todo, a vida toda, a toda hora. A oração nos tempos bons nos educa para rezar também nos tempos ruins e difíceis! O sofrimento não é a melhor escola para aprender a rezar, mas é o lugar onde provamos que aprendemos antes a rezar! Quem não aprendeu antes talvez não seja capaz de aprender na dor! Será mais fácil culpar a Deus que abandonar-se n’Ele. Na dor, o risco de “encher-nos de méritos” que obriguem Deus a nos socorrer será maior que a decisão ousada de “esvaziar-nos” para encher-nos da presença do Deus que nos quer ajudar e salvar! Jesus ordena, por duas vezes, a Pedro e aos discípulos que o acompanharam ao Getsêmani: “Orai, para não entrardes em tentação!”. Ou rezamos ou o sofrimento nos engole e aniquila. São Lucas diz: “Tomado de angústia, Jesus rezava com mais insistência.” Ou rezamos ou ficaremos, como os discípulos, adormecidos de tristeza no horto da nossa agonia! Eis o primeiro aprendizado da paixão de Jesus.
- Solidarizar-nos com quem está na mesma experiência de sofrimento (eis a segunda lição!). Jesus, na iminência de sua paixão e dentro dela, mostra-se solidário com outros quem também sofrem, seja por causa dele (Pedro e as mulheres de Jerusalém), seja pelos próprios erros (o ladrão chamado bom). Não pede só para si. Não contempla só seu próprio sofrimento. Mas lança os olhos sobre os sofredores em derredor. Reza por Pedro ainda na ceia: “Simão, Simão, olha que Satanás pediu permissão para vos peneirar como trigo. Eu, porém, rezei por ti, para que tua fé não se apague. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos!” Jesus reza por Pedro, para que Pedro seja forte e crente, e capaz de zelar pela fé dos irmãos. Jesus consola as mulheres que batiam no peito e choravam por causa dele: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos!” Jesus se ocupa da fé, que, na hora derradeira, brotara no coração do condenado ao seu lado. “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado!” “Ainda hoje estarás comigo no paraíso!” Irmãos e irmãs, não sofremos sozinhos, não somos os únicos a sofrer! Sofremos todos de alguma forma e em algum momento. A segunda lição da paixão é esta: solidarizar-nos, rezar, estar perto dos que sofrem, partilhar a dor, sofrer juntos, olhar para além da nossa dor. No meio das nossas dores e sofrimentos, será um bálsamo precioso enxergar e estar perto de outros em situação semelhante. Olhar para a cruz vai sempre nos fazer bem, como aqueles que olharam a serpente pendurada na haste lá no deserto. Olhar para o Crucificado do Calvário e os crucificados de hoje será um precioso óleo para nossas feridas. Olhar e rezar por eles! Olhar e consola-los! Olhar e acolhe-los no coração! Imitar a compaixão do Mestre. Eis a segunda lição da paixão!
- Deixar-se ajudar por quem aprendeu a lição da compaixão! Três personagens no caminho daquele condenado a morrer na cruz fizeram uma grande diferença: Maria, sua mãe (4ª estação da Via Crucis), Simão de Cirene (5ª estação) e Verônica (6ª estação). O evento desta noite aqui nos põe diante da primeira ajuda. Um encontro de olhares! Sem palavras e sem histerias! Com lamentos e afetos! Um encontro transbordante de amor e de presença! Não é qualquer uma: é a mãe, a sua mãe! Sua mãe sem José! O que a torna ainda mais corajosa e ousada! (Avançai, amigos da Mãe e do Filho, até que os andores se encontrem!) [De Maria lacrimosa, sua mãe tão dolorosa, vê a imensa compaixão. Pela virgem dolorosa, vossa mãe tão piedosa, perdoai-me, bom Jesus.] “Nem todos me abandonaram! Ela, minha mãe, está aqui! Ela ainda acredita em mim e na minha missão! Não desistiu de mim”. Talvez pensamentos de Jesus! “Coragem, filho, avante! Teu amor ainda não tocou o extremo! Não estás sozinho!” Talvez pensamentos da mãe! “Deixa-me passar, mãe, não me detenhas! Ainda não amei até o fim! Ainda não resgatei a humanidade! Ainda tenho amor para continuar”. Pensamentos de Jesus! Se não bastasse esta ajuda e bastaria esta para continuar, Jesus ainda recebe a ajuda dos braços e das costas fortes e solidários de um certo Simão de Cirene. Ajudou Jesus e fez-se discípulo: “impuseram-lhe a cruz para carrega-la atrás de Jesus”. Este homem fez-se solidário e discípulo: pegou a cruz e carregou-a atrás de Jesus. [Em extremo desmaiado, deve auxílio tão cansado, receber do Cirineu. Pela virgem dolorosa, vossa mãe tão piedosa, perdoai-me, bom Jesus.] Se não bastassem estes dois, houve uma terceira expressão de compaixão, outra mulher, Verônica, que enxuga e limpa a face e capacita o condenado a enxergar o caminho. A Mãe e Verônica não estão na letra da Escritura, como o Cirineu, mas estas duas, que poderiam estar entre as mulheres que o acompanhavam segundo o relato exclusivo de Lucas, estas duas mostram nos gestos e na quantidade (duas mulheres e um homem) que o coração materno e feminino é potente e expansivo como o de Deus mesmo! Contudo, nem a Mãe, nem o Cirineu, nem Verônica poderiam ter feito algo se Jesus não fosse humilde o bastante, sendo Deus, para aceitar estas preciosas compaixões humanas. [O seu rosto ensanguentado, por Verônica enxugado, eis no pano apareceu. Pela virgem dolorosa, vossa mãe tão piedosa, perdoai-me, bom Jesus.] Quem sofre precisa tornar-se humilde, esvaziar-se, para receber a ajuda que venha de qualquer irmão. A falta de humildade gera solidão que, agregada ao sofrimento, torna mais insuportável a dor! Eis a terceira e última lição da paixão para esta noite!
- Conclusão: aprendendo de Jesus e de sua paixão, aprendendo deste encontro entre Mãe e Filho nesta noite que nos lança ainda mais para dentro da noite luminosa do mistério da Páscoa do Senhor, grito aos vossos ouvidos: rezai, rezai sempre, rezai nos tempos favoráveis e bons, e perseverai nos tempos sombrios e ruins; pois sofrer sem Deus torna o sofrimento algo insuportável e diabólico, onde facilmente se perde a fé. Aprendei de Jesus a rezar com insistência ao Pai! Sede compassivos com os sofredores de todas as dores, mesmo estando vós mesmos imersos em grandes sofrimentos. Estai atentos aos que sofrem perto de vós. Sede outras Marias, outros Cirineus, outras Verônicas. E finalmente, sede humildes, não desperdiceis a caridade de quem queira ajudar-vos na hora da dor. Sofrer com humildade atrai bons samaritanos. Sofrer com soberba aumenta a dor e apressa a morte!
- Canto: Bendita e louvada seja no céu a divina luz, e nós também cá na terra louvemos a santa cruz! Humildes e confiantes, levemos a nossa cruz, seguindo o sublime exemplo, de nosso Senhor Jesus.
Dom José Carlos de Souza Campos, Bispo de Divinópolis-MG