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Homilia para a Ordenação Presbiteral do Diácono Flávio Nogueira Cunha

Graças ao coração misericordioso de nosso Deus (Lc 1,78)

 

Estamos fazendo um caminho de catequese sobre o Sacramento da Ordem. Na ordenação de Pe. Rafael Costa, pudemos tratar do dever de governo ou “munus regendi”, que cabe ao ministério pastoral do bispo e do qual cada presbítero, como colaborador da Ordem Episcopal, participa por ofício de comunhão. Hoje, tua ordenação presbiteral, caro diácono Flávio, nos permitirá aprofundar o “munus sanctificandi”, ou seja, o ministério de santificar a porção do Povo de Deus confiada à solicitude do bispo com seu presbitério. Daqui a pouco, responderás afirmativamente à pergunta que te farei se “queres celebrar com devoção e fidelidade os mistérios de Cristo, sobretudo pelo Sacrifício eucarístico e o sacramento da Reconciliação, para louvor de Deus e santificação do povo cristão, segundo a tradição da Igreja”. Aqui nos situamos no coração da tua e nossa missão: a de santificar, pelo nosso ministério, aqueles que estão sob nosso cajado de pastores.

 

A Igreja está no mundo como sinal e sacramento de salvação. A partir da Igreja, sua missão e pregação, Deus quer que todos se salvem. Tu também serás consagrado a Deus para a salvação da humanidade, estando unido a Cristo, sumo sacerdote, como também te comprometerás em breve pela tua palavra de aceitação desta tarefa: “Quero, com a graça de Deus”. Espero ouvir esta tua resposta convicta e vê-la todos os dias realizar-se em teu ministério sacerdotal.

 

Salvação é santificação. Ser salvo, ser santo é deixar-se envolver por Cristo, é optar por Ele, é ser alcançado por Ele. Não é só uma adesão intelectual ou meramente espiritual a Cristo, mas um vínculo existencial, ontológico. Ser salvo, ser santo é ser como Cristo, é ser Cristo mesmo. A partir da fé em Cristo nos tornamos “criaturas novas”, nascidos de novo e do alto, fazemos morrer o primeiro Adão e trazemos à luz o novo e definitivo Adão, Cristo Jesus. A salvação é deixar-nos alcançar por Ele pela fé, empenhar-nos num movimento interior e exterior de santificação, de elevação, pela via da conversão cotidiana que nos vai identificando pouco a pouco com Ele, até alcançarmos a estatura d’Ele. “Seremos semelhantes a Ele quando Ele vier em sua glória” (1Jo 3,2). Seremos, pois, julgados ao fim da jornada segundo a medida de Cristo em nós, pelos sentimentos d’Ele em nós, pela humanidade d’Ele em nós, pelo que cultivamos d’Ele no nível mais profundo de nossas decisões e projetos pessoais, dos horizontes e perspectivas que demos à nossa presença no mundo. Seremos julgados por Jesus, pelo Evangelho, pelo Reino; pelo quanto imprimimos disso em nosso ser, nossa missão, nossa história. Pela fé, já somos salvos, destinados, vocacionados à santificação. Santificar-nos é permitir que o mistério da salvação seja o ambiente existencial permanente da nossa estadia no mundo. Ser salvo é ser de Cristo, como Cristo, discípulo d’Ele, missionário deste alegre encontro nosso com Jesus e que deu sentido e beleza às nossas vidas. Ser santo é descobrir e percorrer este caminho discipular e missionário. Ser santo é remeter-se à nossa altíssima vocação: ser filhos e filhas do Deus Santo. “Sede santos porque vosso Deus é santo” (Lv 11,44).

 

Caro diácono Flávio, o ministério de santificar o rebanho nos identifica, por excelência, a Cristo porque é Ele mesmo que age em nós quando presidimos os sacramentos, sobretudo a Sagrada Eucaristia. Temos que presidir e oferecer os sacramentos como Cristo mesmo o faria. Oferecemos nosso corpo, nossa vontade, nosso intelecto, nossa fé para que Ele realize, por este instrumento e meio que é o ministro humano, o que cada sacramento quer conferir a quem o recebe. Recordemos que, por mais indigno e sujo que seja o ministro, é a divindade e santidade de Cristo que dão efeito ao que se pronuncia e se faz em cada ação sacramental. Contudo, assim como santidade do ministro atrai os que desejam o sacramento santificador, a ausência obstinada desta virtude afugenta igualmente quem precisa desta graça santificante mas se indigna com a qualidade e a postura moral do ministro. Não se trata, portanto, de ser ministro de qualquer forma ou de qualquer quilate. Nosso esforço de conversão e santidade pessoal é convite, apelo e exemplo para que o rebanho queira também fazer progressos.

 

Os textos da liturgia da Palavra que escolheste para tua ordenação nos permitem renovar nosso compromisso de dar vida, vida espiritual, vida alimentada de graça santificante, vida robustecida da pastagem de eternidade ao rebanho sob nossa custódia. A profecia de Ezequiel apresenta Deus mesmo como um Pastor pró-ativo, de iniciativa ousada, de coração grande, porque os que deveriam ser pastores no lugar de Deus não cumpriram esta tarefa e por isso Deus os demite do ofício. Permitam-me citar o trecho anterior ao que ouvimos hoje e que se constitui no motivo desta palavra de Deus dirigida ao seu povo disperso e abandonado, prestes a ser exilado na Babilônia ou já ali sem referências de boas autoridades, sem rei, sem sacerdotes, sem pastores. É um oráculo contra os maus pastores.

 

Diz o profeta no início deste capítulo 34: “Filho do homem, fala contra os pastores que governam o meu povo de Israel. Profetiza contra eles e dize que eu, o Senhor Deus, estou dizendo o seguinte: ‘Vós sois os pastores de Israel. Ai de vós, pois cuidais de vós mesmos, mas não tomais conta do rebanho! Vós bebeis o leite das ovelhas, usais a sua lã para fazer roupas e matais e comeis as ovelhas bem tratadas, porém não cuidais do rebanho. Vós não tratais as fracas, não curais as doentes, não fazeis curativos nas machucadas, não buscais as que se desviam, nem procurais as que se perdem. […] Pois bem, pastores, escutai o que eu, o Senhor Deus, estou dizendo. Juro pela minha vida que é melhor que me escuteis. Por não terem pastor, as minhas ovelhas foram atacadas, mortas e devoradas por animais ferozes. Os meus pastores não foram procurá-las. Eles estavam cuidando de si mesmos e não das ovelhas. Por isso, vós, pastores, prestai atenção. Eu, o Senhor Deus, declaro que estou contra vós. Tirarei de vós as minhas ovelhas e não deixarei que sejais os seus pastores. E não deixarei que continueis a ser pastores que só cuidam dos próprios interesses. Livrarei as minhas ovelhas do vosso poder para que vós não as devoreis’”.

 

Estas palavras precedem as que ouvimos hoje na primeira leitura. Deus assume o comando e dá o perfil do pastor bom e verdadeiro, que é aquele que procura as ovelhas, toma conta delas, cuida de cada uma, resgata as ovelhas dispersas nos dias ruins, apascenta sobre os montes, leva-as a boas pastagens e águas tranquilas… Elas “repousarão em prados verdejantes e pastarão em férteis pastagens” e serão cuidadas segundo suas necessidades e condições específicas. O salmista se encarrega de aumentar a lista de cuidados e atenções do bom pastor com o rebanho que lhe pertence e pelo qual se afadiga e dá sua vida.

 

Caro Flávio, dar pastagem fresca e abundante, comida boa e água limpa, não é certamente aqui referência literal à alimentação vegetal e natural própria dos ovinos, mas oportuna metáfora do alimento espiritual e do cuidado divino que fortalece, que cura, que restaura, que põe de pé aqueles que pela fé colocaram-se debaixo do cajado misericordioso de Deus.

 

Nosso múnus de santificar, caro diácono, é a expressão mais próxima e mais real das imagens que o profeta usa para chamar nossa atenção para aquilo de que o rebanho de Deus precisa na travessia do vale tenebroso e nos caminhos inseguros da história. Tua unção nas mãos será para te guardar para a santificação do povo fiel. Santificar é dar ao rebanho a seiva de Deus, a energia espiritual que o faz ir adiante até as campinas e prados eternos. Santificar é nutrir de força interior e sobrenatural cada ovelha, para que não fique refém dos salteadores, dos mercenários, dos maus pastores, perambulando errante e sem horizonte de sentido e de salvação.

 

É a este pastoreio que estás chamado hoje a oferecer-te para sempre. É aí que deves dar tua vida. E dá-la livremente, porque a queres dar. Não estou te obrigando a dar tua vida. Fizeste um caminho de discernimento vocacional e te preparaste para ser pastor bom e não mercenário bem pago. A Igreja não está tomando tua vida contra tua vontade. Tu a estás dando sabendo que a receberás de volta no dia da paga. Estás sendo chamado a ir para seres pastor como Jesus é Pastor, como Deus é Pastor. Não há medida menor nem maior. Se abandonares ou descuidares das ovelhas, não merecerás nem o nome nem a paga de pastor. Deves conhecer as ovelhas que lhe serão confiadas, saber o nome delas, convoca-las de modo que saibam que és o pastor delas, de modo que te sigam, que encontrem em ti, caro Flávio, o que o Pastor Eterno quer dar a cada uma delas. Nosso múnus de santificar prepara, capacita e destina as ovelhas ao seu único e verdadeiro dono: Deus mesmo!

 

Preocupa-te com todas as ovelhas, as deste redil e as de outros, pois não há dois rebanhos e mais pastores, mas uma só grei, congregada ao redor do único Bom, Belo e Verdadeiro Pastor. Todas as ovelhas são d’Ele, mesmo que elas ainda não saibam e poderão vir a saber pelo teu ministério pastoral, pela tua proximidade, pela tua fadiga pela vida e pelo bem delas. Só assim expressarás amor verdadeiro àquele que te chama ao pastoreio, mesmo que seja em medida imperfeita e miúda este teu amor de hoje, mas ele haverá ainda de crescer até levar-te a dar a vida sem reserva, sem medo, sem recuos. Santo Agostinho dizia: “Como podes mostrar que me amas a não ser apascentando minhas ovelhas? O que podes me dar com teu amor se recebes tudo de mim? Portanto, se tu me amas, eis o que tens a fazer: apascenta as minhas ovelhas. […] Apascenta minhas ovelhas. Sacrifica-te por minhas ovelhas”.

 

Que tuas mãos ungidas não se cansem nem se omitam de celebrar a Eucaristia, de perdoar os pecadores, de reconfortar os doentes, de acolher no redil as novas ovelhas e de confirma-las no caminho da fé, de oferecer-lhes a misericórdia de Deus. Que tua pregação seja luz na noite escura, seja correção que faça redescobrir a verdade, seja calor e consolo aos corações resistentes e vacilantes.

 

Teu sacrifício na missão não será para te fazeres grande, conhecido, famoso, procurado, seguido nas redes sociais, mas será o sacrifício, ou melhor, o “dom” (Patris Corde/Pai na sombra) de fazer-te pastor que não deixa faltar o alimento que santifica a ovelha peregrina em prados sempre penúltimos até remete-la aos prados definitivos. O múnus de santificar exige que façamos o que é nosso, o que só nós podemos dar. Não há suplentes neste ofício. E, se há, não se trata de deixares de fazer tua parte só para eles façam. Esta tarefa é tua, é nossa, é de cada sacerdote por vocação, por ofício, por participação especial e sacramental no pastoreio de Cristo. Ou damos ao rebanho os frutos de nosso ofício sacerdotal ou as ovelhas morrerão por falta do que as faria sadias, gordas e fecundas. Que o rebanho não pereça por falta de pastores segundo o coração de Cristo.

 

“Graças ao coração misericordioso de nosso Deus”, que olhou-te com bondade e te chamou, podemos contar a partir de hoje, no grau de presbítero, com mais um precioso colaborador no ofício de santificar o povo e o rebanho que o Senhor constituiu para Si. Obrigado pelo teu sim! Ele te olhou e te chamou. Mantém teus olhos n’Ele. Lembra-te das palavras de São Gregório de Nissa (séc. IV): “Quem quer que seja grande tem os olhos na Cabeça. Não pode acontecer que quem tem os olhos em Cristo os fixe em alguma coisa vã. Quem tem os olhos na Cabeça, entendendo Cabeça por princípio de tudo, tem os olhos em toda virtude. Cristo é a virtude absoluta e perfeita”, é a Cabeça. Que a intercessão da Virgem Rainha e Senhora do Carmo e do Líbano, sob cujo manto nasceste e cresceste, e o exemplo de São Pio X iluminem teu caminho sacerdotal, que desejamos seja longo e repleto de abundante rebanho que, atrás de ti e contigo, atinja os prados eternos, único destino de todo o gênero humano. Amém.

 

Dom José Carlos de Souza Campos

Bispo Diocesano de Divinópolis-MG

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