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Homilia para a Ordenação Presbiteral do Diácono Felipe Hector

Fica conosco, Senhor (Lc 24,29)

 

Com esta reflexão fechamos o ciclo das três catequeses sobre o sacramento da Ordem. Ao Bispo, por primeiro, e aos presbíteros e diáconos unidos a ele cabem o dever ou o múnus de governar, santificar e ensinar a fé católica. Já nos detivemos sobre os dois primeiros ofícios e agora, por ocasião da tua ordenação presbiteral, caro Felipe, vamos brevemente esboçar o ministério do ensino da fé (munus docendi). E já aqui quero indicar-te que não se trata simplesmente de possuir um conhecimento doutrinal que, decorado, passa-se adiante sem mais consequências para além do reter na memória. “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”, ensina São Tiago (Tg 1,22).

 

Em breve, ouvirás a pergunta: “Queres, com dignidade e sabedoria, desempenhar o ministério da palavra, proclamando o Evangelho e ensinando a fé católica?” Tua resposta virá: “Quero”. É por esta pergunta e tua resposta a ela que participarás do grave dever de ensinar. Ensinar a fé católica, com dignidade e sabedoria, partindo de Cristo e conduzindo a Ele, pois Ele é o Evangelho. Recorda-te do dia em que foste ordenado diácono e recebeste o livro dos Evangelhos? “Recebe o Evangelho de Cristo, do qual foste constituído mensageiro; transforma em fé viva o que leres, ensina aquilo que creres e procura realizar o que ensinares”. O confronto com a Palavra de Cristo suscita e exige o ato de fé, que, tendo dado sentido à tua vida, te impõe a missão de ensinar o que aprendeste e creste e a construir tua vida sobre o alicerce de Cristo, que abriu os horizontes de teus caminhos e de todos aqueles que, por ti, crerão nele.

 

Tudo o que cremos e vivemos, a fé e a moral, as realizações cotidianas e as esperanças pessoais e coletivas, de cada fiel e da Igreja toda, tudo bebe e se deixa iluminar pelo Evangelho de Cristo, perscrutado pela fé, pela pregação, pela teologia, pela leitura orante.

 

Não ensinamos nossas opiniões, nossas leituras pessoais, nossa hermenêutica subjetiva, mas bebemos e nos saciamos do patrimônio doutrinal e teológico da fé da Igreja. Ensinamos a fé da Igreja, fé que se organiza e cresce sob o olhar do Magistério, isto é, sob a guarda dos bispos em comunhão com o Papa. “Este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim a serviço desta Palavra, ensinando apenas o que foi transmitido”, ensina a Dei Verbum (10). Este patrimônio da fé brota da Revelação de Deus, contida na Sagrada Tradição e na Sagrada Escritura, que, derivadas ambas da mesma fonte divina, constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja (DV 10). O que tu e nós ensinamos, Felipe, é o que a Igreja crê, o que ela professa sobre Cristo e Deus, sobre o ser humano e a história, sobre o início e o fim de tudo, sobre as verdades da fé e os caminhos da moral cristã.

 

São Paulo recomenda a Timóteo: “Guarda o depósito precioso a ti confiado com a ajuda do Espírito Santo” (2Tm 1,14). São Vicente de Lérins (séc. V), comentando esta passagem, escreveu: “Que coisa é um depósito? Depósito é aquilo que te foi confiado, que não encontraste por ti mesmo, mas o recebeste, não o alcançaste com as tuas forças. Não é fruto de criatividade pessoal, mas de ensinamento; não é um assunto privado, mas que pertence a uma tradição pública. Não procedeu de ti, mas veio ao teu encontro. Frente a ele não podes comportar-te como se fosses seu autor, mas como simples guardião. Tu não és o iniciador, mas o discípulo. Não te cabe maneja-lo a teu gosto, mas teu dever é segui-lo. […] Recebeste ouro, devolve ouro. Não posso permitir que substituas uma coisa por outra. […] Quero ouro puro, não o que somente tem aparência de ouro”, conclui o santo.

 

Caro diácono Felipe, este nosso tempo, com sua mentalidade e suas tecnologias, pode tornar cada um em produtor de “verdades” e divulgador rápido e sofisticado de produções independentes e criativas de versões subjetivas e particulares de cristianismos tortos e equivocados nos seus formatos e numa pseudo-fidelidade ao Evangelho de Cristo. Ouvindo certos usuários personalistas e oportunistas da Palavra de Deus, temos que concluir que se o usuário explicador estiver certo, o Evangelho está errado. Ou o contrário: se o Evangelho é a verdade, então o discursador está produzindo sua própria versão do Evangelho. E o que é pior, com ouvintes atentos e concordantes. Neste tempo de palavras rápidas e mídias gratuitas, a Palavra de Deus, a família, a moral cristã sadia e evangélica, as verdades genuínas da fé se tornaram bandeiras ideológicas e políticas de gente de pouca fé, de nenhuma fé ou de outra fé longe da fé de Cristo e da fé em Cristo. E não faltam seguidores destes intérpretes independentes da Palavra de Deus! Infelizmente!

 

Contudo, este risco é tão antigo quanto a fé. Recordemo-nos das leituras do penúltimo domingo (22º TC/B). Deus falou a seu povo acerca da sua Palavra pela boca de Moisés: “Nada acrescenteis, nada tireis à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo. […] neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos” (Dt 4,2.6). Jesus, no Evangelho daquela liturgia, acusa os fariseus e mestres da Lei do seu tempo de terem abandonado o mandamento de Deus para seguir tradições humanas (cf. Mc 7,8). Os encarregados de ensinar a Lei naquela época colocaram no mesmo nível de importância e gravidade o amor a Deus e ao próximo e o modo de lavar copos, jarras, vasilhas e as mãos sujas, como se uma coisa fosse decorrência ou explicação da outra. Este risco é de ontem e de hoje. Hoje também se troca Cristo pela Igreja, a Eucaristia pelo rito, a ressurreição pela reencarnação, o céu pela terra, o dom da salvação pelas obras meritórias. Hoje também se confunde Evangelho com ideologia, moral com lei, bênção com prosperidade. Os fundamentalismos religiosos, a instrumentalização de Deus e da religião, a usurpação político-partidária daquilo que é da doutrina social da Igreja católica, a relativização da radicalidade evangélica… tudo isso é, em alguma medida, atestado da fragilidade de nossa catequese, da nossa pregação, do nosso ensino da fé católica. Não demos conta de formar uma cultura definidamente cristã! “É preciso reconhecer que nem sempre a evangelização avançou para além de um verniz superficial” (EN 20, in Estudos CNBB 114, nº 51).

 

É aqui que se descortina a beleza, a urgência, a necessidade de um dinamismo novo ao redor deste múnus de ensinar a fé católica. Claro que a doutrina ou o depósito da fé faz progressos, não é um corpo engessado, petrificado e sem avanços. São Vicente de Lérins, já citado, ensinava: “É típico do progresso que uma coisa cresça, permanecendo sempre idêntica a si mesma. Próprio da mudança é, porém, que uma coisa se transforme em outra”. Portanto, Felipe, a compreensão da fé faz progressos e não mudanças. Então, usando palavras do santo: “Que tuas explicações levem a compreender mais claramente o que já se acreditava de forma obscura. […] Presta atenção para ensinar somente o que recebeste; não aconteça que, tratando de expor a doutrina de sempre, de maneira nova, acabes por acrescentar coisas novas” (S. Vicente de Lérins).

 

Pois bem, caro diácono Felipe, a um Deus que se revela a Si mesmo, manifesta-se e comunica-nos seus mistérios e sua vontade soberana acerca do ser humano e sua salvação, reagimos com um consentimento livre e pleno da fé, acolhendo e penetrando esta revelação divina, tirando dela tudo que diga respeito a Deus e à sua criatura humana. Precisamos voltar sempre a estes mistérios, exercitar-nos na razão reverente que os penetra, na catequese e na pregação que os ensinam. O depósito da fé, bem como a verdade e a moralidade que decorrem dele, parecem hoje movediços, frágeis, provisórios, relativos, subjetivos. Perguntamo-nos: como grupos e países declaradamente católicos consentem e aprovam aborto, eutanásia, pena de morte, uso indiscriminado de armas, eliminação de vidas incômodas ou fora do padrão? Onde encontraram na letra e no espírito do Evangelho de Cristo argumento para estarem favoráveis a estas matérias e desobrigarem suas consciências do contrário? E o que é pior ainda: acusando os que pensam em contrário de estarem lendo com miopia o Evangelho. Ou o Evangelho está errado, traduzido errado, interpretado errado ou tem muita gente equivocada na compreensão da fé e de suas implicações.

 

Nossa dedicação ao ministério de ensinar, Felipe, a tua, a dos irmãos presbíteros e diáconos aqui presentes, a minha, deve revestir-se de seriedade, profundidade, clareza, sistematicidade, porque muitos dos nossos não têm ainda uma identidade católica definida e elaborada. Não podemos ter por pressuposta uma já adquirida e razoável formação cristã. Não poucos creem confusamente, misturam crenças (por vezes contraditórias), permitem-se mais do que é permitido, não sabem dar as razões da fé que professam, não sabem declinar verdades básicas do cristianismo, não avançaram muito além da catequese ou ensinamento recebido na infância, não estão nunca aptos ao diálogo ecumênico e religioso. São inconsistentes como folhas ao vento, presas fáceis de pregadores inescrupulosos.

 

Precisamos assumir, com humildade e vigor, nossa missão de mestres da fé. O Catecismo da Igreja Católica diz no número 2034 que o Papa e os bispos em comunhão com ele (e seus colaboradores imediatos na lida pastoral) “pregam ao povo a eles confiado a fé que deve ser crida e praticada”, “ensinam aos fiéis a verdade em que se deve crer, a caridade que se deve praticar, a felicidade que se deve esperar”. Tenhamos sempre presente na nossa mesa de estudos e reflexão, quando nos preparamos para o ministério da pregação e do ensino, a rica, inestimável e intocável tradição do “depositum fidei”. Para nossa ajuda temos o Catecismo da Igreja Católica com seus quatro pilares: a profissão de fé, os sacramentos da fé, a vida de fé e a oração do crente. Contudo, antes deste livro e mais importante ainda que ele, saboreemos constantemente a Palavra de Deus, sobretudo os Evangelhos, nas suas tradições e traduções diversas, seus paralelismos, suas intenções teológicas, suas chaves de leitura. O que estamos ensinando, se não nos debruçamos sobre as Escrituras, o Catecismo da Igreja, a Tradição viva, o Magistério atual? Não podemos pendurar nossos discursos humanos no depósito e no patrimônio irrenunciável da Palavra de Deus. Anunciemos a fé católica!

 

A narrativa do evangelista Lucas que ouvimos há pouco apresenta o Ressuscitado que misteriosamente acompanha seus discípulos e lhes explica a Escritura, abre-lhes a mente para compreenderem a ação poderosa de Deus na história, aquece-lhes o coração com uma verdade que não trai nem engana. “Não ardia nossos corações quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” Precisamos, Felipe, – e somos ungidos para anunciar esta Boa Nova – precisamos caminhar com nossa gente que crê, mostrando-lhes a chave pascal da vida e da história pessoal e coletiva. Precisamos aquecer os corações e as inteligências com as verdades do alto, asseguradas pelo próprio Deus. Precisamos iluminar com a luz pascal as obscuridades do caminho, as dúvidas do coração, os medos da alma humana, as mortes injustas, os fracassos provisórios, as aparentes falências, as pandemias que adoecem e matam. Precisamos ensinar isso em perspectiva cristológica, salvífica, redentora, transcendente, sem paraísos imanentes e sem desprezos pelo mundo. Não há uma fé ortodoxa e uma fé heterodoxa. Há uma só fé, que deve ser crida e ensinada. Não conectemos o progresso necessário e lento da teologia, aquela sistemática, bíblica, moral, com degraus que devamos subir depressa e sem cautela. Bebamos da água limpa e pura que já temos, até que, com segurança, possamos ir pouco a pouco saboreando águas mais profundas onde a fé precisará ter mais oxigênio de maturidade e experiência mais profunda de Deus, passando do alimento líquido ao sólido no processo de educação da fé. Mas não fiquemos só na superfície e na introdução das verdades da fé.

 

 “Deus enviou seu Filho ao mundo para que vivamos por ele” (1Jo 4,9). Viver por Ele significa, antes, conhece-lo, ama-lo, deixar-se envolver neste amor que gera amor, que nos faz permanecer num amor que revela que somos d’Ele. “Nisto saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo 13,35).

 

Nosso múnus pastoral de ensinar precisa ser esforço e resultado humilde de nossa inteligência da fé que dialoga com corações capazes de crer, com inteligências capazes de perscrutar o mistério, a fim de que seja, assim, um ofício que suscite a iluminação gerada pela fé: “Todo aquele que confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus” (1Jo 4,15). O múnus de ensinar leva à fé verdadeira, ao Deus único e soberano, ao amor que faz mergulhar num mistério de pertença e comunhão com Deus.

 

Neste dia da pátria brasileira, celebração de sua discutida independência e soberania, precisamos reafirmar nosso cuidado com a matriz e a identidade religiosa, cristã e ainda marcadamente católica de nossa gente. Avançando, contudo, de um cristianismo superficial, maquiado e periférico a uma presença religiosa profética, testemunhal e robusta, que converta as velhas estruturas de um catolicismo acanhado e fechado em uma Igreja missionária, aberta, em saída, samaritana, guardiã de todas as formas de vida, anunciadora de uma verdade que liberta, de um Cristo que dá sentido e horizonte à história de nosso povo. Precisamos de governantes que saibam verdadeiramente entender e rezar: “venha a nós o vosso Reino”. E estes gestores públicos ainda não os vemos na proporção de que nossa pátria precisa.

 

Caro diácono Felipe, que a Virgem das Dores seja consolo e bálsamo ao longo do teu ministério sacerdotal de governar, santificar e ensinar. Nas trilhas e na escuta de tua Mãe do Céu saberás encontrar e ensinar os caminhos, as verdades, o fogo que aquece os corações dos discípulos de Cristo, enquanto caminham pelas estradas sombrias da história, cuja meta e futuro é a plenitude luminosa do Reino de Deus. Amém.

 

Dom José Carlos de Souza Campos

Bispo de Divinópolis – MG

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