Homilia para a Ordenação Diaconal do Irmão Maurício Sangaletti, SDP
HOMILIA PARA A ORDENAÇÃO DIACONAL DO IRMÃO MAURÍCIO SANGALETTI, SDP.
Igarapé, 12 de dezembro de 2020, festa de Nossa Senhora de Guadalupe.
Irmãos e irmãs, no caminho para Belém e para o Natal deste ano difícil, fazendo memória da primeira vinda de Cristo e anunciando e suplicando a segunda e definitiva vinda, voltamo-nos pela segunda vez, neste percurso litúrgico e espiritual do Advento, para Maria de Nazaré, cujo sim nos fez ver Deus entre nós! No dia 08 de dezembro, celebramos Maria como a Virgem Puríssima, que nos deu o Salvador, o Cordeiro sem mancha, que nos redime de nosso pecado. Rezamos assim a Deus Pai, no Prefácio daquela recente solenidade: “A fim de preparar para vosso Filho mãe que fosse digna dele, preservastes a Virgem Maria da mancha do pecado original, enriquecendo-a com a plenitude de vossa graça. Em Maria, ó Pai, nos destes as primícias da Igreja, esposa de Cristo, sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza”. E ainda a contemplamos e veneramos como a “escolhida, entre todas as mulheres, modelo de santidade e advogada nossa, constante intercessora em favor do povo de Deus”.
Hoje, com todo o continente latino-americano, celebramos a padroeira destas terras tão marcadamente marianas, tão devotas, tão fecundas nas tradições que apontam para a Mãe de Jesus. Na Virgem de Guadalupe e no sinal sensível de sua aparição, que é o manto de fibra vegetal, que milagrosamente já dura quase 490 anos, percebemos mais uma vez o poder e a proximidade de Deus, que permitiu e assistiu a tudo e faz durar a tilma, o manto, do pequeno e pobre índio João Diego, santo celebrado no último dia 09 de dezembro, digno representante das populações indígenas diante do trono do Cordeiro na glória. Em 1754, o Papa Bento XIV, escrevia sobre a estampa da Virgem Santa Maria de Guadalupe: “Nesta imagem tudo é milagroso: uma imagem que provém de flores colhidas num terreno totalmente estéril, onde só podiam crescer espinheiros; uma imagem estampada numa tela tão fina que, através dela, pode-se enxergar facilmente o povo e o interior da Igreja como através de um filó; uma imagem em nada deteriorada, nem na sua suprema beleza, nem no brilho de suas cores, nem nas suas configurações por estar perto de um lago cujas emanações corroem até a prata, o ouro, o bronze…, mas não danifica o manto. Deus não agiu assim com nenhuma outra nação”, conclui o Papa. Há um mistério que encanta, que faz crer, que faz amar a Deus e a Maria, desde o início da colonização destas terras latinas. Enquanto o colonizador escraviza, duvida, humilha e enxota o pequeno indígena, a Virgem insiste, confia, envia, faz dele seu mensageiro, portador de um milagre. A colonização entre nós avançou sob o sinal da opressão, da escravização, da subjugação, da humilhação de milhões e milhões de indígenas e negros, mas Deus não mudou de lado, não tirou sua preferência de cima dos menores, dos oprimidos, dos considerados inferiores. E Deus expressou isso em muitas ocasiões na história de fé de nossos povos: basta lembrar as aparições de Guadalupe e de Aparecida, para ficar só nestas duas. Ambas e outras tantas tiveram como protagonistas e mensageiros os pobres, indígenas, pescadores, incultos…
Oportunamente na oração inicial desta festa da Virgem Maria de Guadalupe, mãe solícita, pedimos a Deus que os povos da América Latina cresçam constantemente na fé e progridam no caminho da justiça e da paz. Fé, justiça e paz são identidade e sonho, utopia e realidade, missão e luta da gente sofrida deste continente que crê, que chora, que sofre ditaduras e terrorismos, que espera o acalento e o cuidado da Mãe Igreja e dos governantes, que produz seus mártires, que não desiste de ser livre, soberano e crente. Estes traços humanos, culturais, sociais, espirituais dão a identidade deste imenso continente. Somos felizes por estar aqui, por ser daqui, por fazer parte deste povo mestiço, sofrido, pobre, mas alegre, crente, combativo. Virgem de Guadalupe, ajuda-nos nas labutas, conserva nossas esperanças e utopias e ensina-nos a ser fiéis discípulos missionários do teu Jesus!
Nesta festa mariana tão cara à nossa América Latina, no caminho de expectativa alegre do Advento, exercitando-nos na celebração das duas vindas de Cristo e na via da vigilância e conversão, reunimo-nos, irmãos e irmãs, para celebrar a consagração de Irmão Maurício Sangaletti ao ministério diaconal. Celebrar o primeiro grau do Sacramento da Ordem na vida deste irmão religioso significa que Deus continua chamando nossos jovens e não desistiu de nós nem da sua Igreja que precisa de ministros e de carismas. Contudo, esta vocação à diaconia da Palavra, do Altar e da Caridade, que Maurício viverá como modo de se configurar ao Pastor Jesus, servo e salvador de todos, esta vocação pessoal deste religioso Servo dos Pobres sinaliza a missão da Igreja inteira e de cada discípulo. Aquilo que Maurício viverá como dom especial é meta e vocação de toda a comunidade cristã, que deve ser uma comunidade servidora, serviçal, samaritana, para que assim, e tão somente assim, identifique-se como comunidade de seguidores de Jesus, “aquele que veio para servir, e não para ser servido”. O ministério diaconal de Maurício mantém acesso e vivo o ideal e o traço distintivo de cada discípulo de Jesus.
Palavra, Altar e Caridade dão sentido ao diaconado. A Palavra de Deus é fonte bendita e luz irradiante da qual todos precisamos beber e penetrar para saciar nossa sede de Deus. O Altar é a mesa do sagrado e celeste alimento, que nos sustenta no caminho missionário. A caridade é a plenitude da lei nova de Jesus e a única e permanente dívida que temos uns com os outros. Palavra, Altar e Caridade são, ao mesmo tempo, dons recebidos e dons oferecidos. Recebemos de Deus, sua Palavra, seu Cordeiro no Altar, sua caridade que salva e oferecemos isto aos irmãos pelo dinamismo missionário de nossa fé batismal e pelo ministério ordenado que zela para que não faltem estes dons benditos: Palavra anunciada, Mesa farta do Pão do céu, Caridade que cuida. Eis os umbrais do teu ministério, Irmão Maurício.
O ministério diaconal deste nosso irmão nasce sob o olhar da Virgem Maria. Olhando para ela, tu, Maurício, e todos nós aprendemos ou renovamos sentimentos, movimentos e verdades da nossa fé. A encarnação do Verbo no seio de Maria, no tempo previsto, é para expressar o amor salvador de Deus, sua paternidade irrevogável, sua graça que atrai a Si, conforme ensina Paulo hoje. Recebemos no mistério da encarnação e do Natal uma altíssima vocação: a dignidade de filhos e de herdeiros. Aprendemos de Maria uma “apressada” solicitude, que leva e distribui alegria e cuidado, que gera e faz circular bênção e regozijo. Maria é bendita, o fruto do seu ventre é bendito, todo aquele que crê e espera em Deus é bendito. O bendito é feliz porque sabe que Deus age em seu favor. “Minha alma se alegra porque o Senhor olhou para mim e fez grandes coisas em meu favor”.
Irmão Maurício, queridos sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas, irmãos e irmãs, Maria, nesta sua festa que celebramos, nos ajuda a ler os desígnios de Deus para nós: somos irmãos, somos d’Ele, somos salvos. O ministério diaconal de Maurício, o ministério presbiteral, o ministério episcopal, o caminho batismal missionário de cada fiel devem ensinar e insistir nestas verdades basilares que brotam do coração de Deus.
Somos irmãos: somos todos irmãos, “Fratelli tutti”(2020), lembra o Papa Francisco. Ele escreveu: “[…] diante das muitas formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (nº 6). E continua o Papa: “Sonhemos, como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que hospeda a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos” (nº 8). Quando alguns se sentirem menos irmãos ou irmãos inferiores, ou outros se sentirem irmãos superiores e privilegiados, aí a missão diaconal de Maurício e da Igreja toda precisa profeticamente anunciar que somos “todos” irmãos, filhos do mesmo Pai, pois portadores, pela fé, do Espírito de Jesus que clama em nós: “Papaizinho!”; filhos da mesma Mãe, pois o “Eis teu filho!” atinge o discípulo amado aos pés da cruz, mas alcança a Igreja toda, cada discípulo. Temos paternidade e maternidade espirituais que nos igualam na condição e na dignidade de filhos e filhas. E, no cuidado dos irmãos, os mais pobres e vulneráveis precisam receber a primeira e maior atenção. Na Evangelii gaudium (2013), Papa Francisco nos ensina: “A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres porque suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências” (EG 200-201). Sobre a diaconia dos pobres, receio não ter que gastar palavras com um “servo dos pobres”. Teu pai fundador e mentor do carisma que escolheste saberá, melhor do que eu, indicar-te, caro Maurício, motivações maiores para esta evangélica opção. Cuida, como Maria, apressadamente dos pobres deste tempo e deste lugar. Expressa-lhes a caridade pastoral de Cristo. És diácono da caridade! Os mais pobres e todos os demais irmãos te aguardam com sentimentos efusivos semelhantes aos da velha Isabel visitada pela Virgem, Mãe do Senhor. Alegra o coração deles, Maurício, com tua presença e teu ministério diaconal.
Somos de Deus: a encarnação do Verbo nos deu dignidade de filhos. Somos de Deus. Não deixe ninguém se esquecer disso, Maurício. Temos um Deus que nos reivindica, nos resgata, nos trata como suas crianças, nos dá tudo como graça, nos dá acesso à sua herança! Esta Palavra não pode ser esquecida nem desconsiderada nem desmentida. Teu ministério diaconal deve anunciar esta e toda Palavra boa e bendita de Deus, toda promessa da parte d’Ele. Esta é a boa-notícia que anunciamos. Serão bem-aventurados também os corações que acreditarem! Tu és portador e diácono desta Palavra.
Somos salvos: fazemos memória, em cada liturgia, em cada oração, em cada ação da nossa fé, da verdade consoladora de que Deus se fez carne para resgatar e salvar a carne humana sujeita ao pecado e à morte. Na sua carne, Jesus matou a morte homicida. Na sua existência fiel, Cristo aniquilou em nós a herança maldita de Adão. No seu corpo crucificado, morto, sepultado e ressuscitado, Cristo Jesus tornou-nos dignos e reconciliados com o Pai, tornou-nos seres espirituais, celestes, benditos. Teu ministério diaconal bebe e celebra este mistério pascal junto do Altar, do qual te tornas servidor e zeloso cuidador. Anuncia, pois, Maurício, a Páscoa do Senhor e nossa participação nela.
Caro, em breve, Diácono Maurício, toma consciência da grandeza, da beleza, da necessidade, da urgência do teu ministério. Vive-o como se nada mais quisesses! Recorda-te que serás diácono por toda a vida, mesmo se te tornares presbítero, mesmo se te tornares bispo, mesmo se te tornares papa. Se não fores verdadeiro e permanente diácono, não poderás ser nada. Quando te esqueceres disso ou não quiseres mais esta incumbência, desiste o quanto antes do que hoje abraças. Cremos que és capaz. Confiamos no teu sim e na tua vontade positiva ao serviço dos pobres, da palavra e do mistério.
Que a Virgem de Guadalupe jogue sobre ti o manto com o qual ela mesma, ali milagrosamente pintada, se encarregará de cobrir-te com sua sombra materna. Sejam consoladoras a ti, Maurício, e a todos nós as palavras da Virgem ao seu obediente Juanito e a todos os seus filhos, desde a cruz até a vinda gloriosa de Jesus: “Não estás debaixo de minha sombra e meus cuidados? Não estás, porventura, em meu colo? O que mais necessitas? Não te incomode nem te inquiete coisa alguma!” Gracias, Madre nuestra! Amém.
Dom José Carlos de Souza Campos
Bispo Diocesano de Divinópolis-MG