Homilia na Ordenação Sacerdotal do Diácono Helton Ferreira
Caríssimos sacerdotes e diáconos, de nossa e de outras dioceses; queridos religiosos e religiosas, por quem rezamos com afeto particular neste ano da Vida Consagrada; prezados seminaristas, que em cada ordenação renovam sua vontade de servir à Igreja; estimados paroquianos da Virgem do Carmo, reunidos hoje para a primeira ordenação sacerdotal nestas terras de um filho daqui; irmãos e irmãs vindos de muitas partes, alguns de além-mar; queridos pais do ordinando, Hélio e Maria José, em cujos nomes saúdo os demais familiares do Diácono Helton, caríssimo e querido Diácono Helton.
É chegada a tua hora! Esperaste mais que teus colegas, mas haverias de trilhar caminhos mais longos para te ocupares, em tempo oportuno e vindouro, entre nós, de outras tarefas além daquelas ordinárias à cura paroquial. Acalentamos contigo a esperança deste teu dia. Tendo tido a oportunidade de estudar, de viver e de trabalhar fora de nosso contexto cultural e eclesial, agora te apresentas para o serviço do Senhor no grau do presbiterado, tomando sobre ti, por graça e favor de Deus, a incumbência de mostrar o rosto e o coração do Bom e Belo Pastor Jesus como missão que configura e formata todo o teu ser. Serás sacerdote para sempre! Todos os dias da tua vida serás visto, buscado, escutado, criticado por seres “totus Dei”, todo de Deus. Age de forma que o Deus que te chamou se agrade de ti. Não traias a Deus para agradares a teus iguais na terra. Que tua fidelidade, teu compromisso, teu testemunho brilhem como tua identidade mais bela e mais notada.
Neste dia, não pode passar despercebido o santo que toma lugar no calendário litúrgico da nossa Igreja: o grande e genial Agostinho. Homem de alma inquieta, de espírito curioso, de razão sedenta da verdade, de pensamento fecundo, de fé maturada e acrisolada pela busca, pela escuta e pelo temor a Deus. Agostinho, no seu perfil de homem, de cristão e de bispo, permite-nos esboçar muitas e oportunas características do discípulo chamado à conformação mais estreita com seu Mestre. Este é o discípulo feito sacerdote.
Gostaria de, a partir de Agostinho e do seu múnus de pastor, teólogo e mistagogo, refletir sobre estas três características marcantes dos pastores dos primeiros séculos e que precisam ser, com certa urgência, retomadas pelos pastores desta hora da história da Igreja: o padre como pastor, o padre como conhecedor e anunciador de Deus e o padre como aquele que introduz no mistério de Deus.
O padre é pastor. Agostinho, bispo da Igreja de Hipona, não deixou de cuidar do seu povo enquanto pensava e escrevia sobre as coisas de Deus. A lida pastoral, certamente marcada pela fecunda pregação e pela reverente celebração do mistério, marcou o longo ministério episcopal deste homem. Hoje, percebe-se a carência e o grito de cuidado pastoral de nossas comunidades. Penso, ainda, em pessoas individualmente que gostariam e esperam nossa atenção e a proximidade. Gente que tem demandas, tem feridas, tem pecados, tem sede de Deus, tem sentimento de pertença à Igreja, mas que não recebe, minimamente, a nossa solicitude. Ficamos no aguardo, tornamo-nos entes imóveis, fixados, esperando que, quem precise de nós, venha a nós, como quaisquer outros que oferecem seus serviços. Nós não oferecemos serviços. Oferecemos Deus e o seu amor.
Padecemos de iniciativas de amor e gratuidade, de fervor missionário e caritativo, de saídas movidas por compaixão, sobretudo na direção dos mais pobres, dos mais distantes de nossos centros, dos socialmente vulneráveis, dos espiritualmente fragilizados. Optamos por investir em quem oferece respostas mais rápidas ou mais eficientes pastoralmente. Os números 200 e 201 da Evangelii gaudium não me saem da mente: “A pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. […] A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária. […] Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. […] ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social”, escreve o Papa.
Precisamos, caro Helton, eu, você, os sacerdotes, os leigos, as pastorais, os movimentos, sem excluir os demais, dar mais atenção aos pobres. O Senhor nos unge e envia para levar a Boa Nova aos pobres, curar os corações aflitos, anunciar liberdade aos cativos de muitas prisões, consolar os tristes, perfumar os enlutados pela vida, anunciou o profeta Isaías. “Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros”, diz o Papa Francisco, na Evangelii gaudium (nº 270). Deus escreve sua história conosco passando pelos pequenos do mundo (os “anawin”, os pobres de Deus). Foi sempre assim. “Hoje e sempre, ‘os pobres são destinatários privilegiados do Evangelho […]. Há de se afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres. Não os deixemos, jamais, sozinhos!”, pede ainda o Papa (EG 48). E uma conversão do nosso modelo de cuidado pastoral depende muito da postura do presbítero na comunidade, diz o documento 100 da CNBB sobre a conversão pastoral da paróquia. Muita coisa não muda na nossa ação pastoral, porque nós, os pastores, não mudamos. “A paróquia há de fazer a diferença no atendimento, começando pelo padre”, diz o documento. Algumas comunidades, infelizmente, têm de aceitar ou suportar, com conflitos, o padre que se declara incapaz de mudar (!), mas, a verdade é que ele não está disposto realmente a empreender esforços para responder às demandas e urgências da nossa época. Não aprendeu “a ser servidor do seu povo, capaz de acolher bem as pessoas e exercer sua paternidade espiritual sem distinções” (Documentos da CNBB 100). Precisamos de padres pastores!
O padre é teólogo. De início, é preciso dar crédito e vazão ao que estudamos e ao diploma que ostentamos. Somos teólogos porque concluímos um curso. Talvez não sejamos mestres nem doutores desta ciência, mas creio que, suficientemente, conseguimos dar as razões de nossa fé, sabemos apresentar argumentos aos interlocutores de dentro e de fora que nos perguntem sobre Deus, sobre nossas verdades de fé, sobre nossa religião. Seria um disparate se não o soubéssemos. Somos portadores de uma palavra lógica acerca de um mistério que permanece inominável, de uma fé pensada ou tornada pensamento, como ensina a Fides et Ratio, de João Paulo II. Então precisamos estar prontos não só ao anúncio (o que é da natureza do nosso ministério), mas também ao diálogo, com os outros saberes e grupos religiosos. “A fé não tem medo da razão; pelo contrário, a fé procura a razão e tem confiança nela, porque ‘a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus’, e não se podem contradizer entre si”, escrevera o Papa Francisco na Evangelii gaudium. A fé cristã produz verdades, princípios, valores, horizontes, e isso deve circular onde se pensa o sentido da vida pessoal e coletiva, onde se discutem as questões acerca do presente e do futuro, onde se pergunta sobre as origens e a vida no planeta; enfim, onde se busca, seriamente, a verdade completa… Temos verdades a dizer. E temos de dizê-las de modo que se percebam a sensatez e a coerência delas. Precisamos mostrar a verdade acerca de Deus e, a partir dele, acerca de nós mesmos, como verdade crível e capaz de produzir sentido. Não aconteça que usando dos muitos recursos que temos, desde a Mesa da Palavra até os mais sofisticados e rápidos meios de comunicação virtual e à distância, nós anunciemos nossas ideologias próprias, nossas ortodoxias pessoais, nossas opiniões sem fundamento evangélico… “Nossa mente não produz a verdade, mas a encontra”, escrevera Santa Edith Stein. Nossa verdade é Jesus, sua palavra, seus critérios, seus caminhos… Não digamos o que Jesus não disse, não mandou dizer e não diria. Não trovejemos nossas lições moralistas, personalistas e fechadas, insustentáveis e indefensáveis pela ótica do Evangelho. Não transformemos Jesus num mito e o Evangelho numa lenda religiosa. Mitos e lendas estão na pré-história do pensamento. A verdade se impõe por si mesma se for anunciada como tal. Não sejamos remadores em contrário na barca da Igreja que deseja ser fiel a Jesus e a este tempo. “A Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá”, dissera Bento XVI. É preciso beber e anunciar a verdade que a fé oferece na pessoa de Jesus. A revelação de Deus, cujo ápice é Jesus, é doadora de sentido, é digna de credibilidade, é palavra sensata… Não é mito, não é irracional, não é para mentes inferiores. Precisamos propor isso aos ouvidos sedentos de transcendência. Eis uma tarefa primorosa do padre teólogo. São Paulo, hoje, nos convida o oferecer nossos corpos e mentes num culto espiritual, ou noutras traduções, culto racional e adequado, capaz de transformar e renovar a maneira de pensar e julgar, distinguir o que é bom, agradável e perfeito. Eis o que toda mente sadia deseja e é capaz de aceitar. Eis o que temos a oferecer em Jesus, no Evangelho e no Reino. “O Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno”, diz o Papa Francisco (EG 265).
O padre é mistagogo, isto é, aquele que conduz para dentro do mistério de Deus. Nossas igrejas deveriam ser “tabernáculos onde Deus habita”, nossas celebrações deveriam ser “tempo onde nosso mistério toca o mistério de Deus”, nossas pregações deveriam aquecer os corações, como no caminho de Emaús, nossa gente deveria voltar para casa e para a vida com a certeza interior de que esteve com Deus enquanto o mistério era celebrado. Acho que ainda estamos longe disso, apesar de isso ser o nosso mais próprio. Às vezes, tem-se a impressão de que nossa gente não leva nada quando sai de nossas celebrações, quando escuta nossas pregações, quando vai a nós buscando uma bênção ou uma graça de Deus… O que está acontecendo com nosso ministério? Parecemos mistagogos sem mistérios, sacerdotes sem sagrados, místicos sem transcendência… Não estamos ajudando nossa gente a descobrir e optar pelo tesouro escondido em Deus e pela pérola grande que empenha toda a nossa vida para possui-la. Nossa gente e nós mesmos estamos agarrados a bens miúdos e, pior ainda, sem acreditar que há bens maiores. Assentados numa vida sem mistérios, sem profundidade espiritual, sem comunhão com a transcendência. Eis nosso campo de missão! Eis o campo para nossa missão mistagógica!
Agostinho nos ensina que a construção da santidade na nossa condição de sacerdotes passa pelo zelo do pastoreio, pelo anúncio convicto e profético de Deus e pela mística de estar, de ver, de sentir a misteriosa presença de Deus dentro de nós mesmos, dentro da Igreja, dentro mundo.
Caro Helton, serve ao Senhor com alegria e que teu jeito de ser padre expresse um cuidadoso e ciumento amor por todos, especialmente pelos pobres, que tuas palavras sejam portadoras da verdade que dá sentido e que salva, que teu ministério aponte para o alto e faça crer em Deus. Que todos que te escutarem fiquem sabendo que o Senhor é Deus e é Santo, digno de culto e de fé, que Ele nos fez e somos dele, somos seu povo e seu rebanho.
Que a Virgem do Carmo, sob cuja sombra estamos, cuide do teu e do nosso ministério sacerdotal e episcopal, para que Ela e nossa gente vejam Cristo na pobreza de nossas vidas, no dinamismo de nossa missão e na inquietude de nosso ser, ansioso por repousar em Deus. Amém.
Dom José Carlos Campos
Bispo de Divinópolis-MG