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Homilia de Dom José Carlos para a Ordenação Presbiteral do Diácono Luis Fernando Alves Cruz

 HOMILIA PARA A ORDENAÇÃO PRESBITERAL DO

DIÁCONO LUÍS FERNANDO ALVES CRUZ

Recolhido no seio de Jesus (Jo 12,23)

O ambiente de onde retiraste teu lema sacerdotal é o ambiente espiritual e mistérico da última ceia de Jesus com seus apóstolos. Contexto afetuoso, intenso, crucial, decisivo. Ali podemos entrever os sentimentos mais profundos de Jesus em relação à sua identidade, sua missão, sua páscoa. Podemos perceber a relação essencial de Jesus com seu Pai. Podemos nos encantar com a relação afetuosa dele com seus mais íntimos amigos e seguidores, os apóstolos. Ali está em jogo a totalidade da vida e do ministério de Jesus: é dali para a cruz ou dali para a fuga. Jesus, na ceia, está um pouco antes do: “Afasta, Pai, de mim este cálice” e do “faça-se, Pai, a tua e não a minha vontade”.

O pretexto de estarmos na celebração de uma ordenação presbiteral, que imprime caráter definitivo e tem natureza de decisão que empenha toda a vida e toda a liberdade, e os textos escolhidos da Palavra de Deus para hoje, nos permitem pensar e repropor três pilares, que sustentam uma vocação que deve durar para sempre e dar sentido a uma vida inteira. São eles:

  1. A espiritualidade: “O Senhor falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo” (primeira leitura).
  2. A formação permanente no cuidado de si e do ministério: “Cuida de ti mesmo e daquilo que ensinas” (segunda leitura).
  3. A imitação existencial e pastoral de Cristo: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (evangelho).

Vamos a um breve percurso de reflexão sobre estes pilares:

  1. A espiritualidade é o oxigênio do presbítero: Moisés não conduzia o povo de Deus sem visitar a Tenda da Reunião. O texto do Êxodo que lemos diz que a Tenda foi armada fora do acampamento e quem quisesse consultar o Senhor saía para a Tenda, armada do lado de fora do acampamento. Moisés ia sempre, e era acompanhado pelos olhares do povo até que entrasse na Tenda. E o Senhor falava com Moisés. Falava face a face, como a um amigo. Uma belíssima imagem! Moisés sabe que é um chamado e um enviado por Deus para presidir o itinerário de libertação da escravidão do Egito, mas Moisés não quer conduzir o povo sem a presença d’Aquele que o envia: “Senhor, se é verdade que gozo de teu favor, peço-te, caminha conosco; embora este seja um povo de cabeça dura, perdoa nossas culpas e nossos pecados e acolhe-nos como propriedade tua”.

O sacerdote não é um funcionário ou um empregado bem mandado de Deus ou do bispo, mas é um vocacionado, um chamado, um enviado de Deus e da Igreja. Um enviado que vai, mas não sem Deus, nem no lugar de Deus, nem como um Deus. Ao contrário, vai como um chamado e um servo humilde e simples mergulhado no mistério d’Aquele que o chama e envia. O sacerdote não pode nunca deixar de estar na Tenda, na intimidade com Deus, sozinho… sozinho… Não basta estar com o povo na Tenda, como se bastassem os encontros espirituais, litúrgicos e comunitários de oração. É preciso, é indispensável, é salutar, que muitíssimas vezes, o sacerdote esteja sozinho com Deus, abandonado na Tenda, na capela, no leito, em algum lugar. Só Deus e o sacerdote. Só Deus e tu, Luís Fernando. Assim como dois amigos, e não mais que dois, que se falam face a face. Não conduzirás o povo confiado a ti a lugar nenhum sem entrares muitas vezes na Tenda, sem consultar o Senhor. Ou pior ainda: sem isso, levarás o povo aonde Deus não o quer levar, mas aonde tu queres. Talvez de uma escravidão a outra. De um Egito a outro. Tua espiritualidade bem vivida, bem cuidada, bem intensa é o segredo e o oxigênio do teu ministério fecundo e frutuoso. Nossa agenda pastoral não nos pode dispensar ou impedir de muitos momentos de silêncio, de solidão acompanhada e de encontros com o Senhor. Como ensinava Santo Anselmo (séc. XII): “Põe à parte os cuidados que te absorvem e livra-te das preocupações que te afligem. Dá um pouco de tempo a Deus e repousa nele”. Ou como ensina o lema que escolheste, Luís: Recosta sempre no seio de Jesus!

Ainda neste primeiro pilar, deixo falar agora o Papa Francisco, que em todos os seus grandes e referenciais escritos, desde o início de seu pontificado, não dispensa um capítulo, normalmente o derradeiro, sobre o tema da espiritualidade. Na Evangelii gaudium, no quinto e último capítulo, retiro estes fragmentos que apresento agora. O capítulo tem como título: Evangelizadores com espírito.

Nº 259: “Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova não só com palavras, mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus”. No texto do livro do Êxodo, no capítulo seguinte ao que lemos há pouco, lemos que o rosto de Moisés resplandecia quando descia da montanha com a tábuas da Lei nas mãos, porque ele havia falado e estado com Deus (Ex 34,29). O sacerdote que entra na Tenda e permanece diante de Deus deixa transparecer sua experiência velada e pessoal vivida com o Senhor.

Nº 261: “Uma evangelização com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que se opõe às nossas próprias vontades”.

Nº 262: “Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de sentido”.

Nº 264: “Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazer isso simplesmente para estar à frente dos olhos de Jesus!

Sem espiritualidade verdadeira, encarnada, cotidiana, tu não irás longe, Luís. Nem tu, nem eu, nem nenhum discípulo, independente do lugar que ocupe nas frentes missionárias e vocacionais da Igreja.

  1. O cuidado consigo e com o ministério: “Não descuides o dom da graça que tu tens e que te foi dada…, acompanhada da imposição das mãos do presbitério”. O sacerdote, jovem ou não, precisa sempre de cuidado. “Cuida de ti mesmo e daquilo que ensinas”. A formação inicial, recebida no seminário, não é tudo, não resolve tudo, não é a última etapa. Precisamos de uma formação permanente e de um cuidado permanente. Cuidado com a saúde integral: saúde física, psíquica, espiritual, vocacional, emocional, afetiva; enfim, do ser inteiro, do homem inteiro, do sacerdote inteiro. Precisamos zelar também do que ensinamos, em comunhão com a Igreja, com o Magistério perene e atual da Igreja, em sintonia e proximidade com os novos ambientes, os novos destinatários, os novos interlocutores, as novas perguntas, as novas mentalidades… Nossa condição criatural, histórica, dialética, não definitiva, em constante mutação exige um cuidado permanente conosco e com o ministério que Deus nos confia através da Igreja. Portanto, “Dedica-te à leitura, à exortação, ao ensino”. O Evangelho é o mesmo. Mas o mundo ao qual somos enviados nunca é o mesmo! A realidade muda o tempo todo e rapidamente!

As diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil (doc. 110 da CNBB) insistem neste ponto da formação e do cuidado permanentes quando afirmam que um laço profundo une as duas formações, inicial e permanente, e faz das duas formações um único itinerário orgânico de vida cristã e sacerdotal (nº 360). Apresentam como motivação para o imperativo da formação permanente o crescimento espiritual do presbítero e seu dinamismo evangelizador em meio à complexidade e diversidade do nosso contexto atual (362). Indicam a formação permanente como processo de capacitação do presbítero para responder aos novos desafios pastorais (363). Contudo, as diretrizes insistem que o sujeito e o principal responsável diante da necessidade da formação permanente é o próprio presbítero e nada poderá substituir seu empenho pessoal (369a).

Toma consciência deste compromisso com tua própria vocação, caro Luís Fernando.

  1. O terceiro pilar é o mais importante: Ser discípulo como o Mestre. Sobre este pilar dedico algumas linhas apenas, porque se não aprendeste isso até aqui, então é tarde demais. Se as etapas da formação inicial, a saber, propedêutico, etapa discipular, etapa configurativa e a síntese vocacional, não te ajudaram a fazer-te discípulo que quer ser como o Mestre, discípulo que só tem um Mestre, discípulo que é sacramento e vigário de Jesus, então estamos fazendo aqui algo inútil e nulo. “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz”.

Caro Luís Fernando, não faltam pés, pés de muitas histórias, de muitos caminhos, de muitas dores, de muitos cansaços, pés de vidas sem sentido, sem Deus e sem outros cuidados… Faltam, contudo, discípulos que deponham os mantos, tenham gosto pelas bacias, pelas toalhas cingidas, pelos pés alheios… Faltam discípulos que, recostados no peito de Jesus e sentindo as batidas do seu misericordioso coração, conhecidos e escolhidos pelo Divino Mestre, queiram ser como Ele, queiram imitá-lo no jeito de ser, de viver, de servir, de abaixar-se…

Luís Fernando, mantém-te recostado no seio de Jesus. Daí virá o sentido de tua vida e teu ministério. Daí virá tua capacidade permanente de lavar os pés sem te cansares e sem te sentires humilhado. Daí virá a beleza, o profetismo e a ousadia criativa do teu seguimento a Cristo na ordem sacerdotal no grau de presbítero. É assim que queremos te ver até o último dia.

Termino com as palavras de Paulo a Timóteo: “Com perseverança, põe estas coisas em prática, para que todos vejam teu progresso. […] Mostra-te perseverante. Assim te salvarás a ti mesmo e também aqueles que te escutam”.

Que assim seja!

Matriz do Coração de Jesus/Itaúna, 03 de dezembro de 2022

Dom José Carlos de Souza Campos | Bispo diocesano de Divinópolis-MG

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