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Homilia da Celebração Eucarística e Início de Ministério Pastoral de Dom Geovane Luís, em Divinópolis

Homilia da Festa do Imaculado Coração de Maria | Início do Ministério Pastoral de Dom Geovane Luís da Silva

Introdução

Amados irmãos e irmãs, hoje celebramos a festa do Imaculado Coração de Maria, a terra fecunda que se abriu para acolher o orvalho da graça divina, o Espírito Santo, afim de que o Verbo de Deus, Jesus Cristo, pudesse encontrar abrigo no coração daquela mulher que fora escolhida para ser a Mãe do Senhor.

A liturgia de hoje marca profundamente o início do meu ministério pastoral nestas terras do Divino e abre perspectivas consoladoras, não só para mim, a quem foi confiada a missão de servidor enquanto sexto bispo desta amada Diocese de Divinópolis, mas para todos nós que somos chamados a evangelizar neste tempo novo, em contínua e acelerada mudança.

Gostaria de evidenciar, ainda que brevemente, três elementos simbólicos que emergem desta narrativa do evangelho de Lucas, há pouco proclamado, onde o evangelista da ternura divina nos fala de uma terra, um coração peregrino e um menino assentado em sua cátedra.

Uma terra

A terra, nossa Casa Comum, é um precioso dom que precisa ser cuidado e abraçado pelo ser humano. Dela não somos donos e temos que levar a sério o compromisso de não degradá-la, para que as futuras gerações também se beneficiem desta dádiva divina. O evangelista nos fala da terra ao fazer referência a dois lugares que marcaram a vida de Jesus e forjaram a sua missão profética: Nazaré e Jerusalém. Entre estas duas cidades desenrola-se parte do caminho terreno de Cristo, da sua infância até à morte, e atrás dele, o caminho dos seus discípulos, a primeira dos quais é sua mãe. O caminho de Nazaré a Jerusalém é imagem da caminhada de fé, vivida por Maria no seu coração. Um percurso existencial que pode ser assumido por todos nós, enquanto Igreja viva do Senhor.

Em Nazaré, terra na qual Jesus permaneceu trinta anos, Ele aprendeu a acolher o quotidiano fugaz, e, ao mesmo tempo, tão necessário para o seu crescimento humano. “Ali o Senhor aprendeu a ser abraçado e beijado, amamentado e amado, a tocar e falar, a brincar, caminhar e trabalhar, a condividir os minutos, as horas, as noites e os dias, as festas, as estações, os anos, as fadigas e o amor do ser humano”. Nazaré, como todo outro mistério, não é escondimento, mas revelação de Deus. O silêncio de Nazaré é o mistério mais eloquente de Deus.

Se por um lado o evangelho de hoje nos introduz no silêncio de Nazaré, por outro, nos transporta para os rumores da grande cidade de Jerusalém, centro do poder religioso do Povo da Aliança, onde o Filho de Deus consumou a sua missão, entregou sua vida na cruz e fecundou a terra com o seu sangue para que nela brotassem os rebentos de vida, de justiça e de amor. Em Jerusalém, naquela hora suprema na qual Jesus nos deu a prova do seu amor até fim, cumpriu-se a profecia de Isaías: “assim como a terra faz brotar a planta e o jardim faz germinar a semente, assim o Senhor Deus fará germinar a justiça e a sua glória diante de todas as nações” (Is 61,11).

Creio que podemos nos alimentar da atmosfera espiritual destes dois lugares santos onde o Filho de Deus se revelou tão humano, próximo e amoroso com todas as pessoas com as quais ele pode se encontrar e conviver. Nestes dois lugares, o Mestre de Nazaré deixou-nos os sinais da sua ternura, proximidade e fidelidade. Certamente Jesus amou os lugares por onde ele passava, a sua terra, a sua gente, mas sem a pretensão de se apossar deles, pois ele mesmo afirmara: “as raposas têm tocas e as aves do céu; ninhos: mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). Jesus, a cada dia, iluminado pela sabedoria divina e humana, se descobria e se tornava um peregrino. Deste modo, a cada dia, Ele entrava mais e mais no coração do Pai e compartilhava com os seus amigos a sua experiência de ser peregrino e sua intimidade com Deus. Podia então dizer tranquilamente aos seus discípulos: “para onde eu vou, conheceis o caminho. Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 4.9).

Hoje ao ser acolhido em nossa amada Diocese de Divinópolis, sinto-me também como um peregrino. Desejo amar esta terra e sua gente sem a pretensão de possuí-la ou dominá-la. No dizer do poeta “uma terra é nossa como uma pessoa nos pode pertencer: sem nunca tomarmos posse dela”. A terra e as pessoas só podem ser abraçadas. Eis o meu desejo: abraçar esta terra diocesana com a sua riqueza humana e religiosa, cultural e pastoral; acolhendo-a na sua realidade com seus desafios. No meu abraço a esta terra, está o meu desejo de abraçar cada pessoa enquanto dom irrepetível de Deus para mim. Esta atitude ao meu ver é fundamental para o exercício saudável e humano da grande missão que me é confiada hoje. Deus me ajude a viver sem a pretensão egoísta de apossar-me deste dom precioso que me é confiado: esta terra e sua gente. Hoje faço minhas as palavras do salmista: “Ó Senhor, sois minha herança e minha taça, meu destino está seguro em vossas mãos! Foi demarcada para mim a melhor terra, e eu exulto de alegria em minha herança.” (Sl 15,5-6).

A referência à mãe terra, aqui simbolizada em Nazaré e Jerusalém, diz muito a nós neste dia. Daqui podemos colher o seguinte ensinamento: existencialmente falando, uma evangelização fecunda e autêntica exige que todos nós assumamos ao mesmo tempo o estilo simples, convivial e despojado de Nazaré e a ousadia do amor até fim que refulgiu na cidade de Jerusalém, e deve se traduzir hoje, no testemunho profético, no cuidado e na defesa da vida e dignidade de cada ser humano.

Um coração peregrino

O Evangelho deste dia nos fala também do coração peregrino, aberto e acolhedor da Mãe de Jesus. Esta referência ao seu coração feminino e intuitivo evidencia a urgência de deixar-se evangelizar para podermos evangelizar com o coração, a partir dos nossos afetos, deixando-nos cativar por Jesus.

Maria, com seu jeito simples, nos ensina que é preciso deixar-se evangelizar abrindo o coração à grandeza do mistério do amor de Deus que se revela e se entrega a nós; para podermos evangelizar com o coração, tornando-nos próximos e solidários com os mais pobres, os sofredores e vulneráveis.

Evangelizar com o coração é assumir a missão por causa do grande amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele, que nos impele a amá-lo cada vez mais em cada irmão e irmã sofredora. A fecundidade da ação evangelizadora tem a sua fonte no amor que recebemos de Jesus para ser anunciado e partilhado com todas as pessoas, sem nenhuma reserva ou discriminação.

Evangelizar é tocar com reverência as feridas do coração humano sedento de justiça, verdade, beleza, amor e paz. Deste modo compreendemos o ensinamento do Papa Francisco sobre a urgência de uma evangelização que toque profundamente o coração das pessoas. Assim ele se expressou na sua exortação apostólica A Alegria do Evangelho: “Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso sempre cultivar um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à atividade”.

Ao celebrar a memória do Imaculado Coração de Maria, à luz da Sagrada Escritura, descobrimos que o coração representa a síntese de uma vida em sintonia com Deus. O coração é princípio de vida, memória e conhecimento. Além dos sentimentos, ele contém em si as recordações e as ideias, os projetos e as decisões do ser humano. Aplicada a Maria, a metáfora do coração corresponde àquele lugar onde se realiza o encontro e a união do Eterno com ela. Deus, de fato, fala ao coração, justamente onde a pessoa é absoluta e irrepetivelmente ela mesma”. Na perspectiva bíblica, o coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre, o lugar onde ele faz as suas opções decisivas, é aquele espaço no qual Deus inscreve a sua lei libertadora, deixando-nos inquietos, seduzindo-nos e agindo de modo sempre novo, surpreendente e misterioso. Em suma, o coração é aquele lugar onde cada pessoa encontra Deus, ou melhor, é encontrada e abraçada por Ele. Este encontro se realizou na humanidade e no coração pobre e despojado de Maria, a Serva do Senhor. Foi ali que o Verbo de Deus encontrou o seu primeiro abrigo neste mundo, como bem nos ensinou Santo Agostinho: “a Virgem concebeu o Verbo de Deus antes no coração e depois no seu ventre”. Maria de Nazaré correspondeu à vontade divina com todo o seu ser. O sim decisivo ela o pronunciou com o coração repleto de fé e esperança, não se baseando em cálculos e pensamentos meramente humanos, mas deixando-se conduzir pelo projeto surpreendente de Deus que lhe confiara uma grande missão.

No evangelho de Lucas, por duas vezes se diz, que a Virgem Maria conservava cuidadosamente no seu coração, todos os acontecimentos que se referiam ao seu amado Filho (Lc 2, 19.51). O evangelista fez questão de anotar no seu evangelho que Maria e José não compreenderam as palavras que Jesus lhes havia dito ao ser encontrado em meio aos doutores no templo de Jerusalém. Maria não compreende as palavras de Jesus, mas guarda-as no seu coração e aqui lentamente faz com que cheguem à maturação. Por isso Ela é o ícone mais belo da Igreja, que guarda a Palavra no seu coração e a transmite fielmente aos irmãos e irmãs.

Daqui colhemos outra indicação para o percurso evangelizador que desejamos realizar juntos com a participação afetiva e efetiva de todos e todas desta amada Diocese: é preciso deixar-se evangelizar para evangelizar com o coração cheio de ternura. Permanece atual e utilíssimo para nós “o conselho de Santo Ambrósio: Como fazia Santa Maria, assim age também tu no teu coração”. Só assim seremos plenamente humanos uns com os outros; discípulos missionários ousados, ardorosos e cheios do Espírito de Jesus. Sem ternura a vida se torna um desespero, a ação social mera filantropia, a pastoral um peso insuportável e a comunidade uma casa em ruínas. Mas se acolhermos o Evangelho em nossos corações seremos um fragmento vivo do amor e da ternura de Deus ao lado dos irmãos e irmãs que sofrem.

Um menino assentado em sua cátedra

O Coração Imaculado de Maria não nos atrai para si mesmo, mas sempre no remete a Jesus Cristo. Hoje o seu coração materno nos conduz ao centro do evangelho, onde aparece o Menino Jesus em meio aos doutores. Por ocasião da Páscoa, Jesus aos doze anos, faz a sua peregrinação a Jerusalém junto com seus pais. Segue para a cidade santa, e, ao invés de retornar imediatamente com sua caravana para Nazaré, permanece em Jerusalém durante três dias.

Lancemos o nosso olhar para aquele recinto sagrado no templo de Jerusalém, onde podemos ver um menino assentado em sua cátedra em meio aos mestres e sábios, escutando, fazendo perguntas e ao mesmo tempo sendo interpelado por eles. E todos os que o escutavam ficavam maravilhados com a sua inteligência e suas respostas.

Aquele menino é a Sabedoria de Deus em pessoa, o Mestre de todos os povos e nações. Ele, sendo a ‘Verdade’, não se impõe, mas ao mesmo tempo não foge ao diálogo com os doutores que tinham outra visão do mundo, da história e do próprio Deus.

O Menino assentado, aberto ao diálogo, indagando, sendo questionado e ensinando com autoridade, é a expressão mais bela daquelas atitudes que podemos assumir em nossa ação pastoral e evangelizadora nos dias hoje.

Numa sociedade tão plural faz-se necessário promover quotidianamente a cultura do diálogo. Só assim haverá entendimento entre as pessoas, respeito às diferenças étnicas e culturais e uma verdadeira paz entre as nações. O diálogo sincero nos leva a reconhecer o outro como verdadeiro dom e nos possibilita o acesso respeitoso ao seu ponto de vista, mesmo que seja diferente ou contrário ao nosso. Como nos faria bem percorrer juntos e sem medo a estrada o diálogo!

São Lucas nos diz que o menino escutava, perguntava e se deixava questionar. Ele sabe escutar plenamente os anseios do coração humano, pois é perito em humanidade e o seu coração humano-divino encontra prazer unicamente na Lei de Deus.

O menino Jesus no templo nos revela quem é o ser humano e sua vocação: somos escuta, ou melhor, tornamo-nos aquilo que escutamos. Este menino é um convite para que cresçamos na arte da escuta aos apelos de Deus e aos anseios do povo. A escuta a Deus se dá no diálogo com Ele, por meio da oração; na contemplação orante do Evangelho, mas a escuta ao povo de Deus se dá na fraterna convivência, na proximidade, na alegria da vida partilhada com todos nas diversas situações ou circunstâncias.

Hoje ao início desta celebração, logo após o sinal da cruz e a saudação à assembleia reunida, fui conduzido a esta Cátedra pelo nosso caríssimo irmão Dom Walmor, e ali, assentado iniciei o pastoreio nesta Igreja Particular, acolhendo e abraçando os irmãos e irmãs que se aproximaram em nome de todos da nossa amada Diocese para expressar seu compromisso de obediência e respeito.

A liturgia da Igreja é obra divina e humana, porque ela nos redime tornando-nos mais humanos. Ao vivenciar o rito experimentamos nosso limite e ao mesmo tempo ativa-se em nós o desejo de alcançar e viver aquilo que o rito significa na sua plenitude. Mas qual é o sentido deste rito na liturgia de hoje, ou seja, o ato de assentar-me e ocupar a Cátedra para dar início ao ministério pastoral nesta Igreja Particular?

Na sua simplicidade, esta ação ritual, traduz perfeitamente o estilo de vida que Jesus assumiu desde a sua infância, sua postura aberta, dialogal e acolhedora: assentar-se é a postura da oferta generosa do tempo às pessoas, da pacificação interior; é sinal por excelência da receptividade alegre de quem deseja ensinar continuando a ser discípulo com os olhos sempre fixos no Mestre. É também expressão da coragem de saber esperar até mesmo as demoras de Deus. Permanece assentado aquele que ensina e tem sede de aprender; o que tem a autoridade que nasce do serviço aos outros; o que julga com misericórdia, porque se reconhece fraco e ferido; o que atua como ministro da unidade e da reconciliação. Este rito evidencia perfeitamente tudo aquilo que Deus faz para dignificar e elevar o ser humano com a sua misericórdia, pois “o Senhor ergue do pó o homem fraco, do lixo ele retira o indigente, para fazê-los assentar-se com os nobres num lugar de muita honra e distinção”. Assumo a missão de pastorear esta Igreja Particular ciente da minha fraqueza, mas confiante na ternura divina que jamais desampara quem se reconhece pequeno e frágil. “Deus escolheu o que para o mundo é fraqueza, para envergonhar aquilo que é forte. O que para o mundo é sem prestígio e desprezível Deus o escolheu, aquilo que é nada, para anular aquilo que é. Assim, ninguém poderá gloriar-se diante de Deus”. Consola-me a palavra do Apóstolo Paulo: “Basta-te a minha graça; pois é na fraqueza que a força se realiza plenamente. Por isso, de bom grado, me gloriarei das minhas fraquezas para que a força de Cristo habite em mim.”

O Menino Jesus, aos doze anos, após visitar Jerusalém permanece por três dias no templo: o seu coração está na Lei de Deus. Jerusalém, aqui mencionada por três vezes, é a meta rumo à qual o Filho de Deus caminha em total obediência à vontade do Pai e, atrás dele, deve caminhar também sua Mãe e todos os seus discípulos e discípulas, em suma: peregrinando para Jerusalém Jesus Cristo abre para todos nós a estrada do amor e da fidelidade que se atualizam na alegria de servir.

O Menino que permanece três dias em Jerusalém, ao ser encontrado por seus pais lhes revela sua missão divina. Sob a forma de uma pergunta Jesus deixa inquieto o coração da sua Mãe: Porque me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa do meu Pai? (Lc 2, 41). Aqui se dá a revelação da missão do Filho de Deus. É como se Jesus dissesse aos seus pais: Estou precisamente onde é o meu lugar: com o Pai, na sua casa. A Ele pertenço, com Ele estou.

Jesus Cristo, ainda menino, sabia a que veio. Gradativamente ele foi tomando consciência da sua missão profética e salvífica. Seu desejo é estar na ‘Casa do Pai’ para permanecer na intimidade com Ele. Este é o lugar que Jesus reservou também para todos os que desejam segui-lo no discipulado e na missão: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que contemplem minha glória, que me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo” (Jo 17, 24). O senso de pertença a Deus é fundamental para o nosso crescimento enquanto ser humano. A experiência do amor de Deus nos liberta do medo, cura nossas feridas, abre-nos o horizonte da missão e nos irmana verdadeiramente.

“Jesus deve estar com o Pai, e assim torna-se claro que aquilo que parecia desobediência ou liberdade inconveniente com os pais, na realidade é precisamente expressão da sua obediência filial. Ele está no templo não como um rebelde contra os pais, mas precisamente como Aquele que obedece, com a mesma obediência que o conduzirá à cruz e à ressurreição”.

Dom Geovane Luís da Silva | Bispo de Divinópolis

Divinópolis, 17 de junho de 2023.

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