
Sermão da Paixão do Senhor por Dom Geovane
Sermão da Paixão do Senhor
“Pai, em tuas mãos, eu entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46)
Amados irmãos e irmãs, a celebração da Paixão do Senhor é fonte inesgotável de esperança, porque na Cruz, o poder da morte foi destruído para sempre e abriu-se para nós a estrada da vida nova em Cristo.
Celebramos o Jubileu da Esperança desejosos de que a paz se torne realidade “para o mundo, mais uma vez imerso na tragédia da guerra. Esquecida dos dramas do passado, a humanidade encontra-se de novo submetida a uma difícil prova que vê muitas populações oprimidas pela brutalidade da violência as tragédias[1].” Não sabemos o que trará consigo o amanhã. Esta imprevisibilidade do futuro pode nos levar a passar da coragem ao medo, da serenidade ao desespero; da confiança à dúvida e ao desânimo. Faz-se necessário fecundar em nós a grande esperança que não declina e nasce do amor de Cristo e funda-se naquele amor que brota do seu coração trespassado na cruz.
A esperança nasce do amor de Cristo por nós, pois fomos reconciliados por sua morte e salvos pela sua ressurreição. Seu Espírito irradia em nós a luz da esperança e a mantém acesa qual chama que não se apaga diante das dificuldades. Nossa esperança funda-se, pois, numa certeza: nada e ninguém poderá jamais separar-nos do amor de Cristo (Rm 8,35.37-39).
Hoje ressoa aos nossos ouvidos a súplica de Jesus Crucificado: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46). Esta oração reassume todos os desejos humanos e a esperança que perpassa toda a história da salvação. Nesta prece ecoa a expectativa de libertação do povo de Israel que rezava: “Senhor, eu ponho em vós minha esperança; que eu não fique envergonhado eternamente! Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel! (Sl 30,2.6).
Na hora da sua morte, Jesus nos ensina que a oração é o lugar primeiro e essencial de aprendizagem da esperança. “Quando já ninguém mais me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar ele pode ajudar-me. Se me encontro confinado numa extrema solidão… o orante jamais está totalmente só.[2]” Com Jesus prendemos o que verdadeiramente podemos pedir a Deus, o que é digno de Deus. Não podemos pedir ao Pai coisas superficiais e cômodas – a pequena esperança equivocada que nos leva para longe de Deus e do seu amor.
A experiência fundamental de sermos criados e amados por Deus faz crescer em nós a confiança e a coragem de nos abandonarmos inteiramente nas mãos do Criador.
- Depositários da grande esperança
O ser humano, “criado para uma realidade grande, para o próprio Deus[3]”, é depositário da grande esperança, ou seja, daquela sede de verdade e desejo de salvação. O ato criador de Deus preparou um jardim para o ser humano, onde pudesse viver em harmonia com todas as criaturas. Depois de criar o mundo, Deus olhou para sua obra e viu que tudo era bom; mas ao plasmar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). Desde sempre somos portadores da grande esperança, pois ao criar-nos, Deus deixou impressa em nós a sua imagem. Por isso o nosso destino é a vida de plena comunhão com o Pai, criador dos céus e da terra. No princípio, ao modelar o ser humano, Deus insuflou em suas narinas um hálito de vida e ele se tornou um ser vivente (Gn 2, 7). Na plenitude dos tempos, na hora da morte e ressurreição de Jesus, Deus Pai derramou o seu amor em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,1-2.5). Somos imagem do Deus Amor e isto define o nosso DNA. Fomos criados para amar e viver em harmonia com toda a obra criadora de Deus: isto nos humaniza plenamente e nos faz ser parecidos com Deus.
- Viver sob o dinamismo do Amor
Na plenitude dos tempos, Deus nos enviou o seu amado Filho, para que unidos a Ele, e por causa dele, aprendêssemos a amar os irmãos e irmãs. Jesus Cristo passou por este mundo fazendo o bem. “Ele sempre se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados”. Ensinou-nos, por palavras e gestos, que somente o amor tem a força de desvitalizar a semente do ódio; o joio maldito que pode crescer e frutificar no coração daqueles que se fecham ao Evangelho.
Vivemos sob o dinamismo deste amor que banhou o mundo qual rio caudaloso de água e sangue jorrados do lado ferido de Cristo adormecido na cruz. Este rio banhou o mundo inteiro, fecundou a terra e fez brotar “rebentos de um mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não morreu nem ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!”[4] Eis aqui o ensinamento mais belo que o mestre crucificado nos transmitiu enquanto seu corpo ferido pendia do estandarte da cruz: o amor desarma e desvitaliza o ódio, o egoísmo e todo instinto de violência.
- Amor desvelado
Na paixão de Cristo se revela a proximidade de Deus e do seu amor misericordioso que nunca perde de vista o ser humano, obra prima de suas mãos e objeto constante da sua ternura[5].
Os evangelhos dão testemunho da presença e da vizinhança de Deus, sobretudo nas horas de dor e sofrimento do ser humano. A narrativa da Paixão segundo os evangelistas sinóticos diz que na hora da morte de Jesus, o véu do templo rasgou-se em dois de alto a baixo (Mt 27,51; Mc 15, 38; Lc 23,45).
Com a imagem do véu que se rasga de alto a baixo anuncia-se o fim do antigo templo e dos seus sacrifícios: o Corpo glorioso de Jesus crucificado é o novo templo que nos reconcilia com o Pai. O Crucificado-Ressuscitado reúne os povos e os unifica no sacramento do seu Corpo e Sangue. A crucifixão de Jesus é ao mesmo tempo a destruição do antigo templo e o nascer da liturgia da misericórdia.
Mas o rasgar-se do véu do templo significa também que agora está aberto o acesso ao coração de Deus. No Crucificado, o próprio Deus tirou o véu e manifestou-se como Aquele que nos ama até à morte. A partir da morte de Cristo na cruz, o acesso a Deus está livre. Agora é possível colher o significado profundo daquilo que Jesus dissera aos seus discípulos antes da sua morte: Eu e o Pai somos um (Jo 10,30). Ninguém vai ao Pai, senão por mim. Quem me viu, viu o Pai (Jo 14,6.9). Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim (Jo 14,11). O Crucificado é o novo templo construído pelas mãos de Deus. Através da sua humanidade, Ele nos abriu um caminho novo e vivo de acesso ao Pai (Hb 10,20) e assim podemos fazer a experiência do encontro amoroso com Deus e com o próximo. Em Cristo Jesus se revela a dignidade do ser humano recriado naquele amor que se doa sem reservas.
Antes de nos reunirmos aqui, celebramos a Paixão do Senhor e vivenciamos o rito do desvelamento da Cruz exposta à veneração dos fiéis.
A Cruz de Cristo, envolta num véu, foi entregue àquele que presidia a ação litúrgica, e este a desvelou, vez por vez, até o seu total desnudamento. Este rito é acompanhado pelo cântico: Eis o lenho da Cruz, do qual pendeu a salvação do mundo, ao qual demos nosso assentimento respondendo: Vinde, adoremos! Aquele rito dramático nos revela a beleza da proximidade de Deus ao longo da história da salvação, tecida por tantas lutas, situações de dor e sofrimentos.
A cruz desvelada é uma recordação consoladora da proximidade de Deus, que em todas as circunstâncias caminha com o seu povo, compreende suas fragilidades, cura suas feridas, enxuga suas lágrimas, respeita suas etapas, alerta e repreende os seus erros.
O desvelar gradativo do Crucificado é um anúncio da grande esperança, mesmo nas noites de dor e solidão. Uma recordação da presença amorosa de Deus no mistério do sofrimento humano ao longo da história da salvação. Esta revelação progressiva da ternura divina na história, atingiu sua máxima beleza na vida e missão de Jesus Cristo. N’Ele se dá a revelação máxima do amor de Deus pelos homens e mulheres deste mundo.
No rosto humano e divino de Jesus encontramos uma multidão de mulheres e homens marginalizados pelos preconceitos sociais e culturais, crucificados pela miséria e pelo desemprego, feridos pela violência que ceifa tantas vidas em nossas comunidades e assume as formas mais sofisticadas e perversas na indústria da guerra insana entre nações.
O véu que até então encobria a imagem do Crucificado é símbolo ainda de outro véu, a indiferença humana que encobre o corpo nu dos crucificados aos olhos do mundo de hoje. Infelizmente, o véu da indiferença está estendido ante nossos olhos e só será removido quando nos deixarmos conduzir pelo Espírito de Jesus Cristo, Mestre do Amor. Ele se identificou com os mais pequeninos. Se nos convertermos a Ele e professarmos seu senhorio sobre nossas vidas, será dissipada a cegueira da indiferença e do egoísmo que envolve o nosso coração.
O desvelamento da Cruz é um convite para que retiremos o véu do nosso olhar diante da vida e reconheçamos a proximidade de Deus, confessemos o senhorio de Cristo e acolhamos sua presença nos pobres, sofredores e marginalizados.
Ao entardecer deste dia enquanto acompanhávamos o rito do desvelamento do Santo Lenho, foi como que desenhada, ante nossos olhos, a imagem de Jesus Cristo crucificado (Gl 3,1). Este desvelamento ritual da Cruz deve acontecer de modo real em cada um de nós.
Ao desvelamento da Cruz corresponde o desvelar-se do olhar e do coração humanos. Só assim nos deixaremos afetar pela dor do outro. Enquanto não permitirmos que o Senhor retire o véu do egoísmo que venda os nossos olhos e endurece nosso coração, ficaremos indiferentes ao clamor, às dores e sofrimentos das pessoas, em especial os mais pobres, descartados como lixo pela falta de políticas públicas voltadas ao bem comum e ao desenvolvimento social e integral do ser humano.
A morte de Cristo na cruz rasgou o véu do egoísmo e agora nos faz enxergar as injustiças sociais do tempo presente. Rasgou-se o véu que encobria a miséria do mundo e evidenciou ainda mais, sobretudo em nosso país, a crise social, política, cultural e religiosa na qual estamos imersos. Foi desvelado aos nossos olhos o drama enfrentado por uma multidão de homens e mulheres sofredores e desesperançados. Esta situação clama por solidariedade e exige que deixemos de lado toda indiferença diante do sofrimento humano. Estamos no mundo para sermos sinais de esperança e para isto somos enviados ao encontro de muitos irmãos feridos em sua dignidade: os presos, os enfermos, os jovens; os migrantes, exilados, deslocados e refugiados; os idosos e os pobres[6].
Nesta hora trágica da história humana, agravada ainda mais por uma guerra insana entre nações irmãs, “o mundo, como linho senescente, rasgou-se por inteiro. Partida sem despedida, corações e tanta gente ferida. Mesmo na incerteza do caminho prossigamos a marcha da esperança. Despertemo-nos dos sonhos, páscoa da indiferença à bonança. Haja coragem, ousada teimosia! Felizes os que se deixam afetar. Poderão ver, chorar e amar. Para isto fomos feitos”.
Deixemo-nos afetar pela paixão de Cristo que se atualiza na paixão do mundo e de cada ser humano. “Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Ele espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura.[7]”
Mas como bem afirmou o Papa Francisco, “somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de «padecer com»: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!” No mundo de hoje falta o pranto somente no rosto de poucos que vivem uma vida sem grandes necessidades. Estes certamente não sabem chorar. São indiferentes ao sofrimento alheio. Mas choram os marginalizados, choram aqueles que são postos de lado, choram as vítimas do racismo, choram os desprezados, choram as mulheres, vítimas da violência no lar; choram os que padecem as crueldades da guerra. Deixemo-nos afetar pela Paixão do Senhor e assim poderemos ver, chorar e amar. Para isto fomos feitos!
O ato de ver e chorar deve se transformar em amor ativo, ação que promove a vida e a dignidade das pessoas. Toda ação séria e reta do ser humano é esperança em ato[8]. “Assim, por um lado, da nossa ação nasce esperança para nós e para os outros; mas ao mesmo tempo, é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e oriente o nosso agir.[9]”
Após o desvelamento da cruz, vimos o corpo desfalecido do Senhor contemplamos seu rosto desfigurado e tocamos suas chagas gloriosas prestando-lhe, deste modo, a nossa adoração. Agora não podemos mais andar em busca de pretextos para cultivar o ódio em nossos corações, pois todo aquele que odeia o seu irmão é homicida (1Jo 3,15); não temos o direito de procurar motivos falsos para legitimar e oficializar a violência e o uso de armas, pois ouvistes que foi dito: amai os vossos inimigos.
Não, agora abriu-se para nós a estrada do amor e da esperança. Cristo abriu-nos este caminho com a sua cruz e “nisto conhecemos o amor: Jesus deu a sua vida por nós. Ora, também nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16), Na cruz desvelada resplandece a misericórdia de Deus que ilumina o mundo e a dignidade de cada ser humano.
- Amor consumado
A misericórdia de Deus se revelou em Jesus Cristo. Seu amor por nós foi consumado na cruz. Com razão, na hora extrema de sua morte, ciente de que havia cumprido plenamente a vontade do Pai, Jesus exclamou: tudo está consumado (Jo 19,30). Esta palavra nos remete ao início de sua paixão quando lavou os pés aos discípulos. Jesus amou os seus até o fim.
A cruz emoldura toda a existência terrena de Jesus. Sua morte de cruz é a consequência de sua fidelidade à vontade do Pai e de sua compaixão pelos sofredores. O peregrino de Nazaré caminhou livremente rumo a Jerusalém para a oferta de si mesmo na cruz. Sua subida à Cidade Santa é uma verdadeira ascensão até o coração do Pai. Essa ascensão até à presença de Deus passa pela cruz: é a subida para “o amor até o fim” (Jo 13, 1), que é o verdadeiro monte de Deus.
Tudo está consumado! Jesus Cristo cumpriu fielmente a missão que o Pai lhe confiou: salvar e redimir a humanidade.
- Descendimento
Voltemos o nosso olhar para Jesus crucificado e recordemos tantas vidas perdidas pela violência, fome e guerras. Somos um só corpo em Cristo.
A sexta-feira da paixão é memória perene do Corpo e Sangue de Cristo. Um evento acontecido no calvário e atualizado hoje em cada celebração eucarística. Quando celebramos a missa, vemos sobre o altar aquilo que somos: o corpo de Cristo simbolizado no pão e no vinho consagrados. Podemos, pois, afirmar que quando contemplamos o crucificado reconhecemos no corpo ferido de Cristo a nossa identidade: somos o Corpo do Senhor! O Crucificado é a revelação daquilo que somos e a manifestação do modo pelo qual entramos em comunhão com o Senhor e com o próximo. O amor que se sacrifica pelo outro é a estrada que nos une a Deus e aos irmãos.
“Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros” (1 Cor 12, 27). Somos membros do seu corpo ferido e dilacerado livremente por amor. São Paulo Apóstolo se sentia unido a Jesus crucificado e desejava ser contado como um dos membros do seu corpo, a tal ponto que chegou a afirmar: “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 19).
Semelhante a uma pedra pequenina que ao ser lançada ao centro de um lago produz ondas circulares que atingem a sua margem, assim a paixão de Cristo atinge o nosso ser; assim também o sofrimento de homens e mulheres anônimos deveria atingir e ferir o nosso coração. Nunca nos esqueçamos de que somos membros de um só corpo. “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria” (1Cor 12, 26). Toda ferida no Corpo de Cristo e no corpo de um irmão sofredor nos atinge e exige de nós aquela coragem necessária para defendermos a vida e a dignidade do ser humano.
Não há como realizar esta cerimônia tão comovente do Descendimento do corpo de Cristo da cruz e não pensar sobre o cuidado com a vida de cada ser humano, e mais ainda, não pensar em nossa identidade verdadeira, pois somos um só corpo em Cristo.
Após a morte de Cristo cessaram as dores no seu corpo, mas cresceu ainda mais a angústia no coração de sua Mãe, rasgado por mais uma espada de dor ao pensar no que seria feito do corpo de seu Filho. Quantas mães que perderam os seus filhos, vítimas da violência, sentem a necessidade de ver, tocar e reconhecer o corpo daqueles que foram gerados em suas entranhas!
Na hora extrema da existência terrena de Jesus brilha a luz do amor nos gestos de cuidado com o seu corpo. As mãos de José de Arimateia, Nicodemos e sua Mãe, Maria, fazem-nos recordar todos os homens e mulheres deste mundo que lutam por justiça, promovem a vida e o cuidado com o ser humano.
José de Arimateia, membro rico do Sinédrio, era discípulo secreto de Jesus. Até então ele vivia sua fé às escondidas (Jo 19, 38), e por medo dos grupos judaicos dominantes, não se manifestara como tal. José era alguém que esperava o Reino de Deus (Mc 15,43; Lc 23,51) e ao ver o corpo de Cristo pendente da cruz quis abraçá-lo e tirá-lo do Santo Madeiro. Encheu-se de coragem, mostrou-se publicamente como discípulo e pediu a Pilatos para tirar o corpo de Jesus da cruz. Vejam como a paixão e morte de Cristo encheu de coragem a vida deste homem! Que a celebração da Paixão do Senhor nos devolva a coragem de amar e de se interessar pelos sofrimentos do próximo. O sofrimento de um irmão não pode ser motivo de desânimo para nós. Não podemos ficar de braços cruzados diante das situações de morte que rodeiam nossa vida. Ser cristão é retirar Cristo da cruz a cada dia, pois são muitos os crucificados do nosso tempo.
O cuidado com o corpo de Jesus se manifesta ainda quando Nicodemos, um homem notável entre os judeus, levou consigo uns trinta quilos de perfume feito de mirra e aloés, para envolver com aromas, em faixas de linho, o corpo do Senhor (Jo 19,39-40). A extraordinária quantidade dos perfumes, que supera toda a medida comum indica a realeza de Jesus. Seu corpo será depositado numa sepultura real.
Certa vez, de noite, Nicodemos havia procurado Jesus para conversar. Naquela circunstância, Jesus dirigiu-lhe uma palavra que transformou a sua vida para sempre: Nicodemos quem “não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus” (Jo 3, 3). É preciso nascer de novo a cada dia, é preciso nascer do alto. A partir de então, Nicodemos teve a certeza de que Jesus era o enviado de Deus. Agora, no calvário, Nicodemos recorda aquele momento de intimidade com o Mestre de Nazaré e oferece a Jesus a totalidade do seu amor simbolizada neste perfume feito de mirra e aloés. Totalidade que é sempre migalha diante da grandeza do amor de Deus para com o ser humano.
Antes de retirarmos da cruz o corpo do Senhor, voltemos o nosso olhar para aquela inscrição, colocada no ponto mais alto do Santo Lenho. Ali escreveram o motivo da culpa e do crime de Cristo. Segundo o evangelista João, Pilatos mandou escrever este letreiro e o fez colocar sobre a cruz. Muitas pessoas leram aquela inscrição, pois fora escrita em hebraico, latim e grego: “Jesus Nazareno, o Rei dos judeus”. Jesus é Rei e seu domínio sobre nós é liberdade. Somente Deus tem o poder de reinar sobre nós, pois dele é a nossa vida e o nosso coração.
Aproximem-se José de Arimateia e Nicodemos! Aproximem-se com veneração da cruz de Cristo e toquem com respeito neste corpo ferido! Com reverência retiremos esta inscrição e elevemos nossa prece a Jesus crucificado, pedindo-lhe a graça de viver nossa dignidade batismal continuando no mundo o seu serviço de amor.
Um dos momentos mais dolorosos da paixão do Senhor foi sua coroação de espinhos. Ele, o Servo Sofredor, sentiu dores lancinantes. Com respeito e devoção retiremos esta coroa, motivo de gozação e zombaria para aqueles que o condenaram. Nesta hora, Senhor, nós vos pedimos por aqueles que sofrem dores incuráveis nos leitos de nossos hospitais e nos lares de nossas cidades. Concedei-lhes a graça de experimentar em suas vidas a vossa presença consoladora; recebam o carinho dos familiares e amigos; tenham um tratamento digno de suas enfermidades e encontrem alívio em suas dores.
Vossas mãos, Senhor, que acalmaram o mar bravio e os ventos fortes que davam contra a barca de Pedro, agora estão paralisadas e transpassadas pelos pregos da cruz. No entanto, pregadas no Santo Madeiro, elas fizeram mais pela salvação do mundo do que movendo-se e parando a tempestade ou dando vida aos mortos e saúde aos doentes. Os pregos que transpassaram as mãos e os pés do Senhor ferindo sua carne, são os nossos pecados: é o nosso medo de crer, amar e esperar.
A mão direita do Senhor fez maravilhas, a mão direita do Senhor me levantou (Sl 117,16). O cravo que feriu a mão direita de Jesus é a ausência da fé, o pecado do nosso coração endurecido, que nos leva à indiferença diante do escândalo do sofrimento humano. Retiremos da mão direita de Jesus este cravo que lhe causou tanta dor e peçamos a graça de crer. Senhor, pela chaga dolorosa que este cravo deixou em vossa mão, aumentai a nossa fé.
O outro prego que transpassou sua mão esquerda é a ausência do amor, a rejeição ingrata de quem não soube responder ao “Amor” com amor. Assim exclamou São Francisco de Assis ao contemplar o crucificado: “O Amor não é amado. É preciso amar o Amor”. Ao retirá-lo de vossas mãos, Senhor, pedimos que seja arrancado do nosso coração o ódio e o egoísmo que nos impedem de viver como irmãos, e pedimos ainda que jamais se apague em nós a chama da caridade.
O prego que feriu os pés de Jesus é a ausência da esperança diante do mal presente no mundo, levando-nos quase a crer que não vale a pena fazer o bem, promover a justiça social e a vida dos mais pobres. Ao retirá-lo dos pés de nosso Redentor pedimos a graça de sermos libertados do medo e do desânimo que nos impedem de caminhar ao encontro dos irmãos e passar por este mundo fazendo o bem.
Agora, acompanhemos no silêncio, a deposição do corpo de Jesus no esquife. Como não nos lembrarmos de sua Mãe nesta hora? “A esperança encontra em Maria a sua testemunha mais elevada. N’Ela vemos que a esperança não é um passageiro otimismo, mas dom de graça no realismo da vida. Aos pés da cruz, enquanto via Jesus inocente sofrer e morrer, embora atravessada por terrível angústia, repetia o seu “sim”, sem perder a esperança e a confiança no Senhor[10]. a tradição nos ensina que o corpo de Jesus repousou por primeiro nos braços de Maria. Por isso a ela nos dirigimos: Recebei, oh Mãe da Piedade, o corpo do vosso amado Filho e recebei-nos também como filhos no vosso regaço maternal. Apesar de suas dores, Maria continua a crer, continua a esperar em sua fé, continua a amar em sua esperança. Que a seu exemplo permaneçamos firmes na fé, fiéis no amor e alegres na esperança, a fim de que quando passarmos pela noite escura da dor e quando vier a hora de viver o nosso Sábado Santo, possamos esperar com a Mãe das Dores, a páscoa da Ressurreição, antecipação e promessa do Domingo sem ocaso, na Vida que não terá mais fim.
Dentro de alguns instantes iniciaremos a nossa procissão. No dizer de Drumond, grande poeta mineiro, “a procissão mergulha na noite. O corpo do Senhor morto será velado na Matriz de Nossa Senhora do Carmo. A procissão não para aí, ela continua dentro de cada um, seguindo rumos diferentes. O roteiro é toda a vida de cada pessoa”.
Renovemos nossa esperança no Senhor e coloquemos em suas mãos a nossa vida. Neste ato de entrega, façamos nossa a prece do Beato Carlos de Foucauld: Meu Pai, entrego-me a vós, fazei de mim o que for do vosso agrado, o que quiserdes fazer de mim, eu vos agradeço. Estou pronto pra tudo, aceito tudo. Desde que vossa vontade se realize em mim, em todas as vossas criaturas; não desejo outra coisa, meu Deus. Deponho minha alma em vossas mãos, eu vo-la dou meu Deus, com todo o amor do meu coração, porque vos amo, [em vós espero], e porque, para mim, é uma necessidade de amor dar-me e entregar-me em vossas mãos, sem medida, com uma confiança infinita, pois sois meu Pai. Amém.
Dom Geovane Luís da Silva – Bispo de Divinópolis – Carmo do Cajuru, 18/04/ 2025
[1] Spes non confundit, 8
[2] Spe Salvi, 32.
[3] Spe Salvi, 33.
[4] EG 278.
[5] EG 274.
[6] Spes non confunditi 10 – 15
[7] EG 270.
[8] Spe Salvi 35.
[9] Spe Salvi 35.
[10] Spes non confundit 24.