Homilia para a Missa do Crisma 2019
Divinópolis, Catedral do Divino Espírito Santo, 18 de abril de 2019 / Dom José Carlos Campos
“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu […] para proclamar o tempo da graça do Senhor” (Is 61,1a.2a). Palavras do profeta, palavras de Jesus, palavra de Deus, palavra de salvação! Com esta palavra bendita, quero convidar a todos a sentimentos de alegria, de reconhecimento e de gratidão por tudo o que Deus fez em nós e por nós nestes 60 anos de vida e missão como Igreja Diocesana de Divinópolis. Vamos proclamar o tempo da graça do Senhor neste nosso caminho. Precisamos testemunhar as maravilhas que Deus fez entre nós. Não podemos nos calar, já que as pedras não falam!
O profeta Isaías e o profeta de Nazaré anunciam um tempo bom e novo, fecundo e feliz, onde o Espírito de Deus realizará “grandes coisas” em favor dos seus eleitos, tornados uma comunidade sacerdotal (cf. Ap 1,6), uma descendência abençoada por Deus, um povo santo e digno de Deus. Deus mesmo se encarregará de presidir e levar a cabo a obra boa e desejada pelos que esperam n’Ele. No tempo no profeta Isaías, esta obra consistia em voltar para casa, em reconstruir Jerusalém, em recuperar a soberania e a liberdade perdidas na humilhação do exílio babilônico. Diz o profeta: “para reservar e dar aos que sofrem por Sião uma coroa, em vez de cinza, o óleo da alegria, em vez da aflição”. Palavras do profeta no pós-exílio, quando a reconstrução da Cidade Santa já trazia sinais de abusos, exclusões e idolatrias. O profeta retoma utopias e insiste numa conversão que não pode estagnar-se.
Na sinagoga de Nazaré, que Jesus frequentara quando criança, depois do seu Batismo no Jordão pelo Batista e após as investidas fracassadas do diabo que queria dividi-lo e colocá-lo contra o Pai, o profeta galileu inicia seu ministério público. “Pela força do Espírito, Jesus voltou para a Galileia, e sua fama se espalhou por toda a região. Ele ensinava em suas sinagogas e era elogiado por todos”, palavras de Lucas no versículo que antecede ao texto de hoje. Jesus torna presente na história, pela sua presença, palavras e gestos, o “hoje” da profecia. “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. O tempo novo e bom de Deus já ganhou movimento em direção a sua plenitude. Em Jesus, o Cristo de Deus, o primeiro ungido, que estabelece, funda e envia uma comunidade sacerdotal de ungidos, o reinado de Deus se afirma como único e último fim, meta e utopia, como o novo e o bom de Deus para a humanidade e a criação inteira. “Tudo foi criado por ele e para ele”. Cristo, o Verbo, é a causa e o fim de todo o criado, o princípio e a consumação de todas as coisas, o alfa e o ômega. Um olhar teológico da história nos faz crer e esperar que tudo será recapitulado em Cristo, ou seja, tudo terá Cristo como cabeça e será parte do seu corpo místico, destinado igualmente este corpo à glória já consumada na cabeça.
É na direção deste reino de Deus, que está no meio de nós e dentro de nós, como ensina Jesus num texto exclusivo de Lucas (17,21), é que nós, a Igreja e o mundo realizamos nossas fadigas de conversão. Neste tempo de Deus, os pobres serão cuidados, os feridos na alma serão curados, os prisioneiros das prisões interiores e exteriores serão libertos, os que não enxergam o caminho, que é Jesus, irão descobri-lo, os oprimidos de muitas opressões poderão ergue-se… Esta é a missão dos discípulos: ir e levar o mundo, pela via da conversão pessoal e estrutural, ao tempo do Reino, ao tempo da graça do nosso grande Deus. A conversão é um movimento na direção de Deus, na direção do Reino. Somos o que somos, ministros ordenados e fiéis leigos, em vista desta missão. Nada valerá a pena se o que somos, o que fazemos, o que rezamos, o que elaboramos em planos e estratégias… não favorecer a que o reino vá ganhando visibilidade e amplitude entre nós. Somos a Igreja do Reino, discípulos do Reino, operários do Reino. Nossa opção por Jesus nos faz obreiros desta empreitada.
Neste tempo quaresmal, que termina na tarde deste dia, quando se iniciarem as celebrações do Tríduo Pascal, vamos reacender em nós a certeza da vitória de Jesus e do seu Reino, mesmo imersos numa história carregada de contradições, de falências e de feridos. Em Jesus e no Reino que é Ele mesmo e que começa com Ele, continuamos a anunciar, a desejar e a usufruir na história, na Igreja e no mundo, dos frutos benditos, mesmo que parciais, deste tempo da graça do Senhor; tempo que só terminará quando nossos olhos virem, vindo das nuvens, o “Transpassado”, “aquele que é, que era e que vem, o Todo-poderoso”. Temos missão até que Ele volte!
Esta missão, irmãos e irmãs, temos tentado levar a sério nestas seis décadas, mesmo vivendo no epicentro das maiores mudanças da história da humanidade. Nossa configuração modesta, bucólica e rural dos inícios, cedeu lugar a um cenário desafiador, urbanizado e globalizado. Eram menos cidades ao início (apenas 12 na bula de criação da diocese; hoje, 25), cidades menores, com geografia urbana mais reduzida, menos periferias, mais comunidades rurais. Hoje temos centros urbanos mais ampliados, periferias mais abundantes no entorno das cidades, comunidades rurais com fortes traços urbanos, comunidades mais distantes que desapareceram ou sobrevivem com poucas famílias já envelhecidas na idade e que não quiseram avançar para os centros urbanos. Além da grande Divinópolis, com uma população estimada em mais de duzentos e trinta mil habitantes, cidade eclética e receptiva, temos cidades que giram já em torno dos cem mil habitantes, como Nova Serrana, Pará de Minas e Itaúna. Temos cidades que sofrem cada vez mais os impactos da proximidade com a grande metrópole do Estado, aqui pensamos em Bicas, Igarapé, Juatuba, Mateus Leme. Temos as que conservam ainda as belezas da arquitetura e as mais genuínas tradições religiosas, como Itapecerica, Pitangui, Carmo do Cajuru. Temos aquelas que ainda conservam traços e ritmo bucólico e familiar, como Camacho, Leandro Ferreira, Conceição do Pará, São José da Varginha, Onça do Pitangui, Pedra do Indaiá, Araújos, Perdigão, Florestal, São Gonçalo do Pará, apesar de enfrentarem problemas sociais endêmicos. Temos as que não perderam, apesar das crises, seu vigor produtivo em diversas áreas, como Cláudio, São Sebastião do Oeste, Itatiaiuçu, Igaratinga. Temos infelizmente também dentre estas as que vivem, hoje e de longa data, o drama da exploração, sabida ou velada, dos recursos naturais: Itatiaiuçu, Igarapé, Bicas, Itaúna, Itapecerica, Pitangui, Onça do Pitangui e outras. Ainda o drama das cidades com foco quase único e exclusivo de produção, como Nova Serrana, São Sebastião do Oeste, Pará de Minas, Cláudio, sem contar as do circuito minerador.
Para além deste mapa geo-sócio-econômico, que expressa a variedade e a riqueza de nossa região, apesar das contradições e perversidades do sistema econômico, que exigem também uma postura crítica e ousada da Igreja como uma interlocutora importante nas discussões acerca da sustentabilidade deste modelo e da legitimidade dos processos, não podemos deixar passar despercebidas as riquezas humanas, religiosas, espirituais, culturais da nossa gente. Pessoas de todas as categorias sociais produzindo arte, beleza, conhecimento, religiosidade, cultura, nas cidades, nas periferias e nas comunidades rurais. É um fantástico mosaico que vale a pena perscrutar e conhecer. Este é o olhar só do Bispo, que já girou por estas terras diocesanas. Outros olhares enxergarão outras belezas e preocupações.
Mas, para que trazer isto à tona? Porque esta é a nossa gente, nossa história, nosso chão. Aqui construímos nossa fé. Aí, nós e Deus temos feito história. Neste universo humano e geográfico, mais de duas centenas de padres, religiosos, religiosas, desde a primeira hora destes 60 anos, viveram e vivemos! Aqui, nós, os ministros ordenados, os consagrados e consagradas, dedicamos nossos dias, nossas energias, nossas vidas. Estrangeiros e nativos, homens e mulheres, mais jovens e mais idosos, nos mais diversos carismas e serviços, nós nos oferecemos cotidianamente ao povo eleito e amado que Deus constituiu aqui. Neste dia do sacerdócio e da renovação de nossas promessas neste lugar de missão, quero agradecer, em nome dos leigos, das famílias, das comunidades, a cada sacerdote desta nossa Igreja jubilar, aos que estão hoje aqui e aos que estão no céu. Penso no Pe. Antônio Pontello, no alto dos seus quase 98 anos de idade e 75 anos de sacerdócio, completados neste ano, para agradecer aos irmãos sacerdotes, religiosos e religiosas, operários da primeira hora. Alguns participaram de todo o caminho dos 60 anos. São memórias vivas de nossa história (Pe. Ordones, Pe. Demóstenes, Pe. Bento, Pe. Bechelaine). Penso no Pe. Elder, ordenado há menos de um mês, e nele penso nas gerações mais novas de ministros ordenados e consagrados, nossa esperança e nossa alegria. Penso no Pe. Carlos Pinto, cujo centenário de nascimento celebramos, e em Dom Belvino, para fazer memória de todos os falecidos que amaram a Igreja e a missão até ao fim. Penso no Pe. Joaquim, para trazer presentes os adoecidos de muitas enfermidades. Penso no Pe. Giovanni, espiritano residente e ainda ativo em Itaúna, para trazer a esta Eucaristia os missionários estrangeiros que viveram, trabalharam, morreram e estão sepultados entre nós! Tornaram-se membros da nossa família eclesial e diocesana! Penso na Irmã Maria de São José (98 anos de idade e 72 anos de Carmelo, 53 no nosso Carmelo) para agradecer a Deus as expressões de vida religiosa contemplativa, ativa e eremítica presentes entre nós (6 comunidades masculinas, 15 femininas, incluindo um Carmelo e algumas eremitas, o que nem toda diocese tem). Penso em Dom Francisco Cota, o último eleito, para recordar os que, dentre nós, foram chamados ao episcopado. Penso e vejo aqui Dom Mário Clemente Neto, bispo emérito de Tefé, e trago nossa comunhão espiritual e material com aquela Igreja-irmã, com quem desde 1972, quando iniciou este projeto, partilhamos nossos dons. Neste 17 de abril, no caminho para nossa celebração jubilar, rezamos pelo aumento e qualidade das vocações sacerdotais, religiosas e missionárias na Igreja. Rezar é nosso primeiro compromisso com as vocações de especial consagração! Estas vocações são resposta e dom de Deus a uma comunidade que reza e pede.
Não seríamos quase nada e muito pouco teríamos feito sem a legião de homens e mulheres, leigos e leigas, nas cidades e nas capelas rurais, que deram e dão o melhor de si para cultivarem e manterem as raízes religiosas de nossa gente, na mais variada gama de ministérios e serviços. A lista é interminável e jamais concluída. Homens e mulheres de corações, modelados pela Palavra e pela Eucaristia, que deixaram sua marca de fé nas instituições, nos cargos, nas funções, na política, na sociedade. Deus seja louvado por tudo e por todos!
Deus fez maravilhas entre nós. Os esforços desta nossa Igreja jubilar não foram em vão. Penso em pessoas, penso na ação pastoral, penso nas vocações, penso nas muitas ações sociais, educacionais e culturais, penso nas nossas rádios e mídias que evangelizam, penso no novo seminário que nossa gente ajudou a ampliar, penso nos sonhos de futuro para nossa Igreja. Temos muito ainda a fazer, muito de que nos converter, muito para sonhar. Mas tudo é graça, tudo é dom, tudo é maravilha de Deus em nós, para nós e conosco. Experimentamos muitos frutos neste tempo da graça do Senhor, na história que construímos com ele, nos cansaços pelo Reino.
Vamos juntos, irmãos e irmãs, bispos, padres, religiosos, religiosas, leigos, leigas, comunidades à meta que nos é proposta pelo Mestre. Temos ainda muito pela frente, temos muitos para evangelizar, temos muitos esperando os cuidados da nossa unção. Somos uma comunidade de ungidos para fazer o bem, para construir a Igreja, para estabelecer o Reino.
E que nosso bom e querido Pe. Libério, que reconhecemos como santo e aguardamos ansiosos que a Igreja toda também o reconheça, peça a Deus por nós, a Igreja da qual ele mesmo fez parte. Como Maria dizemos: Nossa alma glorifica o Senhor, nosso espírito se alegra em Deus, nosso Salvador, que fez grandes coisas em nosso favor. Amém.