Homilia na Missa do Crisma 2016
Querido Dom Belvino, nosso Bispo Emérito, que celebra neste ano seus 60 anos de vida sacerdotal – e haveremos de fazer festa por isso; prezado Pe. Paulo Sérgio, nosso Vigário Geral, em nome de quem saúdo os demais sacerdotes presentes, do nosso clero e de outras dioceses; permitam-me uma menção especial ao querido Pe. Nilo, falecido no último dia 11, e nele nossa gratidão aos sacerdotes e leigos falecidos que tomam parte nesta liturgia a partir do céu; saúdo também os sacerdotes justificadamente ausentes e os nossos dois que estudam fora do Brasil; prezados religiosos e religiosas, com quem me alegro pela retomada e reorganização do núcleo diocesano da CRB; caros seminaristas e vocacionados; estimados membros das novas comunidades e dos institutos seculares; irmãos e irmãs vindos das nossas 53 paróquias; ouvintes e internautas que nos acompanham pelas nossas rádios ou estão conectados a elas pela internet; amigos e amigas que nos assistem ou assistirão.
Querido Povo de Deus, reunido nesta Igreja Particular, no entardecer deste dia, encerraremos nosso caminho quaresmal com o Senhor, e iniciaremos os três dias benditos que constituem o ápice da vida de Jesus e da vida da Igreja. Precisamos beber do mistério destes dias para iluminar e esclarecer as muitas obscuridades e fraquezas na nossa história pessoal, eclesial e social de discípulos do Senhor. “Só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério da vida humana”, ensina a Gaudium et Spes 22. De fato, muitas tribulações e inquietações rodeiam nossas vidas, nossa pátria e roubam-nos a paz e a esperança. Estamos envolvidos num nevoeiro obscuro de insegurança, de violência, de instabilidade e corrupção política, de crise econômica, de fragilidade ética, de desigualdades sociais, de perturbações espirituais… Vivemos tempos de fluidez, tempos líquidos, tempos sem consistência, tempos sem grandes perspectivas coletivas, tempos do cultivo do individual e do privado, tempos de grandes desilusões políticas, tempos de desmoralização e banalização das instâncias democráticas de poder, tempos de encantamentos com qualquer outro modelo de governo e de poder, como rota de fuga da ideologia e da situação reinante… Onde entramos nós aí? Onde entra a fé neste contexto? Onde tomam lugar a Igreja e os discípulos de Jesus? Que luz a fé lança sobre estes cenários?
Neste dia em que se expressa a beleza, a diversidade e a comunhão da nossa Igreja diocesana, não podemos deixar de nos perguntar sobre nossa parcela de contribuição na iluminação destas realidades humanas, sociais e eclesiais, que não só estão diante de nós, como algo fora de nós, mas nas quais estamos profunda e irremediavelmente inseridos, tanto de forma ativa como passiva.
Celebrando e rezando hoje pelos ministros ordenados da Igreja, com quem Deus quer contar para continuar escrevendo sua história de amor e de salvação de todo ser humano, quero reconsiderar dois aspectos da nossa consagração e missão: o primeiro, a unção; o segundo, a misericórdia.
Nós não somos os proprietários da Igreja nem os responsáveis onipotentes pelos destinos do mundo, mas como pastores e guias temos uma obrigação vocacional e moral de interferir, de sugerir, de conduzir, de construir utopias que levem o selo e o consentimento de Deus. Eis exatamente onde entra o papel social, ideológico, ético da Igreja. Não esperamos de boca aberta e braços cruzados o advento das novidades e dos bens terrenos desejados por Deus aos seus. A Igreja não pode estar relegada às sacristias, como seu lugar próprio, diz o Papa Francisco. Nosso lugar é o mundo. Lá vivem os discípulos e os demais irmãos. Lá estão as contradições que afugentam o Reino. Lá está o Maligno roubando e destruindo os que Deus fez para Si, desde a fundação do mundo.
Somos (mais do que fomos…), somos ungidos, por um óleo que não seca nem se esvai, cujos efeitos permanecem para sempre. “Vós sois os sacerdotes do Senhor, chamados ministros de nosso Deus… quem os vir há de reconhece-los como descendentes abençoados por Deus”, diz hoje o profeta. Somos portadores de uma unção poderosa e eficaz, que nos selou para uma parceria e uma amizade indissolúveis com Deus. Contudo, não é uma unção para o poder, mas uma unção para o serviço, para o anúncio, para o cuidado. A unção é poderosa, mas é o poder de Deus que realiza e dá efeito ao que fazemos ou devemos fazer de bom. O Senhor nos ungiu e nos enviou… Vamos por causa dele, por mandato dele, sob os efeitos do seu poder, na direção dos que ele nos destinou… na direção dos humildes, dos feridos na alma, dos cativos de muitos cativeiros físicos e espirituais, dos sem a graça, dos aflitos pelas tribulações, dos inconsolados de muitas dores, dos sofredores, dos tristes, dos sedentos de Deus… Eis, queridos irmãos sacerdotes, a minha e a sua missão. Não devemos descuidar de ninguém, mas não nos esqueçamos de que Deus estabeleceu preferidos, sem registrar excluídos. Como sacerdotes do Senhor, ministros de Deus, somos chamados a cuidar de todos numa escala de preferência que o próprio Senhor estabeleceu. Ninguém excluído, mas começando por quem precisa mais ou espera há mais tempo, porque esquecidos pela Igreja (infelizmente!) e pelo mundo. O ricos, os sadios, os felizes, os livres, os que estão de pé… podem esperar sua vez enquanto dedicamos nosso tempo e nossas fadigas primeiras aos que estão nas situações inversas. “Eu os recompensarei por suas obras segundo a verdade”, diz o profeta.
Diante da missão que a unção nos conferiu é preciso sempre o discernimento entre as “minhas” coisas e a missão recebida pela unção. As minhas coisas, os meus projetos pessoais, as minhas vontades não são mais importantes nem prioritárias diante da missão proveniente da unção. É preciso, inclusive, acreditarmos que a recompensa prometida venha de encontro às nossas necessidades e planos humanos, no tempo que o Senhor haverá de nos indicar como o mais próprio para cuidar das “nossas”, das “minhas” coisas. A preferência exigida pela unção é o cuidado dos outros; a recompensa podemos esperar como cuidado de Deus com nossas coisas, se elas nos capacitam e qualificam para a missão. Deus haverá sempre de nos tratar e atender dentro daquilo que responda, preencha e aperfeiçoe nossas aptidões para a unção do serviço. Na minha vida e na sua vida sacerdotal, é necessário que esta palavra da Escritura se cumpra todos os dias, como ela se cumpre em Jesus, assim como recorda Lucas hoje. Negligenciar a unção é trair o Espírito do Senhor que foi derramado sobre nós; é faltar com o amor cuidador que está na essência da nossa unção; é gastar para outros fins os dons que Deus nos concedeu quando nos constituiu ministros e sacerdotes dele. Certamente não temos tudo que as pessoas vêm buscar em nós. Mas não podemos deixar de dar aquilo que só nós podemos dar: os bens espirituais que Deus nos confiou para distribuir, começando pelos mais simples e pobres. Isso não podemos negar a ninguém. Caso neguemos, estaremos sugerindo aos irmãos ir buscar estes bens em outros territórios espirituais ou os teremos deixado ir sem aquilo que foram buscar, sem o que Deus tinha para dar e “nós” decidimos não dar. Não neguemos a ninguém uma bênção, uma prece, uma imposição de mãos, uma unção na enfermidade, uma oração na aflição. Não deixemos ninguém ir sem dar-lhe algo da parte de Deus. É nosso dever dar. É nossa missão oferecer.
Estamos no ano jubilar da misericórdia. Eis o segundo tema. Somos chamados a uma fadiga ainda maior neste ano a fim que a misericórdia de Deus alcance corações mais distantes ou mais resistentes; sem deixar de cuidar dos muitos que já aprenderam a beber com sadia frequência da fonte do coração misericordioso de Jesus. Quero convidá-los, queridos irmãos sacerdotes, mesmo que tenham na mente dificuldades e resistências a esta prática, a conduzir seus rebanhos às Portas Santas abertas entre nós. O Papa quer nos conduzir às fontes da misericórdia. Nesta prática multissecular da Igreja, cabe-nos levar os penitentes e peregrinos a rezar e fazer comunhão com o Papa, a assumir obras de misericórdia corporais e espirituais que estreitem nossa proximidade e nosso afeto com Deus e o próximo e a romper com os efeitos negativos e históricos do pecado, cauterizando a veia que o pecado abriu, a fim de que cessem as consequências e penas dos erros cometidos. Cabe-nos levar nosso rebanho à Porta Santa, Deus e só Ele e do jeito dele dará e garantirá os efeitos espirituais deste rito de passagem. Não privemos nosso povo de colher os frutos disso, tirando o sentido bonito e espiritual desta prática. Não temos o direito de pensar contra a Igreja, ou melhor, de pensar até temos, mas não temos o direito que julgar uma prática da Igreja com nossos critérios pessoais de aceitação ou recusa e induzir os irmãos a pensar como nós. É preciso conservar o “sensus ecclesiae”, isto é, o sentido da Igreja, o sentido que a Igreja dá ao que ela faz. A prática é da Igreja, à qual servimos e que nos sustenta e acolhe como seus ministros. Façamos comunhão com o Papa e com a Igreja também aí. “A peregrinação (à Porta Santa) há se servir de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa, deixaremo-nos abraçar pela misericórdia de Deus e nos comprometeremos a ser misericordiosos com os outros como o Pai o é conosco”, escreve o Papa Francisco na Bula do Jubileu da Misericórdia.
E antes de terminar, tomando o tema do ano da misericórdia: “Misericordes sicut Pater”, “Misericordiosos como o Pai”, inspirado em Lucas 6,36, convido a todos, particularmente os sacerdotes, a uma experiência mais frequente e fecunda da misericórdia de Deus, tanto no sacramento da Reconciliação, mas também pela via orante, pela direção espiritual, pelos exercícios espirituais regulares… Deixemos que a misericórdia do Altíssimo cure as feridas da nossa alma, do nosso ser, da nossa história; permitamos que Deus tome nosso velho e sujo barro e sopre sobre ele seu hálito sempre novo e bom, que nos capacite para a unção que recebemos e para o ministério da misericórdia que nos toca de perto.
Queridos e amados de Deus e da Virgem Santíssima, que estão aqui e que nos acompanham pelas mídias, rezem por nós, seus pastores, a fim de que possamos levar em nossos vasos de barro os tesouros que Deus destinou a cada um de vocês, à Igreja e ao mundo. Que a Mãe de Jesus, que cuidou d’Ele com amor, também cuide de nós, os filhos que Ela recebeu na paixão do seu amado Senhor. Bendito seja Jesus, que nos ama e libertou dos pecados e fez de nós todos um reino de sacerdotes para Deus; bendito aquele que é o Alfa e o Ômega do mundo e de todos; aquele que é, que era e que vem. E nisso cremos! Amém.
Divinópolis, 24 de março de 2016.
Dom José Carlos de Souza Campos | Bispo de Divinópolis