Homilia para a Ordenação Diaconal de Flávio Cunha, Rafael de Oliveira e Felipe Hector
HOMILIA PARA A ORDENAÇÃO DIACONAL DE FLÁVIO NOGUEIRA CUNHA, RAFAEL DE OLIVEIRA COSTA E FELIPE HECTOR DE OLIVEIRA
Nova Serrana, 31 de outubro de 2020
“Santificai-vos e sede santos, porque eu sou o Senhor, vosso Deus” (Lv 20,7). “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2b). Ser santo é um imperativo e uma meta. Quem dá a ordem e propõe a meta é o Senhor, três vezes santo (cf. Is 6,3). Chamados filhos de Deus, e o somos desde já, seremos o que ainda não somos: semelhantes a Ele. Todo aquele que espera em Cristo purifica-se, santifica-se a si mesmo, como Ele é puro, é santo. São Bernardo dizia: “O desejo que brota em nós pela comemoração de todos os santos consiste em que Cristo, nossa vida, tal como a eles [os santos], também apareça a nós e nós juntamente com Cristo apareçamos na glória”.
Sem “lavar e alvejar nossa veste no sangue do Cordeiro” não seremos capazes de mergulhar nossas vidas no caminho de santidade apresentado nas bem-aventuranças. Sem mergulhar com profundidade numa comunhão e união mística com Cristo, sem adentrar o mistério de sua paixão, morte e ressurreição, nossa capacidade de resiliência, de suportação e de ascese será incapaz de manter-nos no caminho proposto pelo ensinamento de Jesus no início do grande sermão da montanha, no evangelho de Mateus. Não haverá pobreza em espírito, base das demais bem-aventuranças e de todo progresso espiritual, se, entre o discípulo missionário e seu Mestre, não houver um vínculo afetivo e existencial que promova exaustivamente uma imitação, uma pertença, uma participação no Corpo místico do Senhor, um esvaziamento de coração. Coração cheio de si mesmo não tem lugar para Deus. Coração vazio e pobre é lugar onde Deus habita e se manifesta.
A vocação que abraçamos, qualquer uma, é meio, apenas uma via. A santidade é a meta, é o fim, é o desfecho. No céu não há hierarquia entre os redimidos. Não haverá solteiros e casados! Não haverá clérigos e leigos. Haverá remidos e redentor, Deus e seus eleitos, o Santo e os salvos. O que importa não é ser diácono, presbítero ou bispo, pais ou consagrados. O que importa é avançar e ser “segundo a estatura de Cristo” (Ef 4,12). Sem isso, foi perda de tempo e vida inútil o que fizemos, sem focar nem alcançar o verdadeiro e único destino de todos. “Desde antes da criação do mundo, Deus nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis diante dele, no amor” (Ef 1,4).
Quero recordar-lhes nesta celebração, irmãos e irmãs, duas verdades acerca de nossa condição humana: somos condenados a morrer, lembra-nos o salmista (cf. Sl 79), destinados ao fim (finados), e somos vocacionados a ser santos (semelhantes Àquele que nos fez). A vocação à santidade nos liberta da condenação a morrer! A santidade dá sentido à vida e nocauteia a pretensa vitória da morte. Sabemos que morreremos, mas sabemos, pela fé, por que vivemos, para que vivemos, para quem vivemos. Nosso problema não é que vamos morrer (isso é inevitável), mas a questão é que sentido e meta damos a nossa vida mortal (isso é uma decisão nossa). Nem todos, infelizmente, tornar-se-ão santos, mas todos morrerão. Ser santo é escolha. Ser mortal é dado.
A vocação é chamamento de Deus e discernimento humano, que preenche a ousadia do viver e derrota a angústia do morrer. Uma vocação ajustada, oferecida generosamente ao bem dos outros, cultivada nos desafios da cotidianidade, renovada nas crises e indecisões, este é o sentido que nos põe de pé na fadiga da história e aniquila a angústia de sermos seres para a morte. A falta de sentido é a anti-sala da morte. O sentido da vida, que subjaz em cada vocação acertada, preenche e sustenta de escondida beleza e santidade as aflições do caminho, a busca pela mansidão, a luta pela justiça, o aprendizado da misericórdia, a penitência pela pureza de coração, a ânsia pela paz, a suportação por causa d’Ele, o Mestre, o Morto Vivente, o Alfa e o Ômega, o princípio e fim de toda esperança humana, o Cordeiro transpassado. Por Ele e n’Ele nossa vida começa na terra, pois tudo foi feito por Ele; e se estende na direção da multidão dos marcados na fronte, pois tudo foi feito para Ele. Tudo foi feito por Ele e para Ele! (cf. Cl 1,16)
A vocação preenche o tempo cronológico da existência, dá vazão às energias vitais, dá sentido aos nossos dias, doa suportação na tribulação, oferece kairós ao nosso crónos! Eis-nos hoje aqui, portanto, para celebrar a vocação de especial consagração a Deus, escolhida por estes três dos nossos jovens: Flávio, Rafael e Felipe.
O diaconato é o primeiro grau do sacramento da Ordem. Mas tem natureza própria. Não é trampolim. Quem avança para os outros dois graus não deixa este para trás como superado e encerrado. E se isso, por infelicidade, ocorrer, conheceremos ministros autoritários, carreiristas, oportunistas, parasitas, exploradores. Certamente, para vocês, caros diáconos, virão outros graus, ministérios e ofícios. Trocar-se-ão as vestes (e por vezes nem elas!); contudo, acumular-se-ão os empenhos, as investiduras, as responsabilidades. O bispo é um diácono que tornou-se sacerdote e foi chamado ao episcopado. O bispo é o primeiro diácono e o revestido da plenitude do sacerdócio; por isso, mantém também as vestes diaconais e sacerdotais. E, oxalá, tantas preces de ordenação, imposições de mãos, unções com óleo, e vestes sagradas sobre a cabeça episcopal, signifiquem e expressem verdadeiramente amor maior, fadiga maior, entrega maior, serviço mais generoso, missão mais aguerrida. Rezem, por favor, para que assim seja comigo.
O diaconato é o primeiro degrau de quem quer seguir de perto a Cristo no ministério ordenado, sendo mais d’Ele que do mundo, por isso celibatário, encarnando no seu ministério pastoral a imagem do servo fiel, obediente, casto e sofredor, que veio não para ser servido, mas para servir e dar a vida. E pode dá-la porque a vida do consagrado e do ministro ordenado é toda d’Ele, do Mestre. Ninguém lhe reivindica, com afeto humano, esta vida doada. Somos d’Ele e tão somente d’Ele. Não temos a quem dar a vida senão a Ele. A Ele presente naqueles que comungam nossa natureza, nossa história, nossas fragilidades. Quem diz que ama a Deus e não ama o irmão é mentiroso: na fé, no ministério, na religião. Nossa oblação ministerial não se assenta na alienação frente ao mundo, na verticalidade exclusiva com o alto e excludente do que é terreno, debochando ou esquivando-nos das tribulações da história. Ao contrário, nosso ministério exige sujar nossas vestes nas tribulações e lava-las no sangue e no mistério do Cordeiro. Nosso múnus nos graus do sacramento da Ordem deve tocar as chagas, a poeira, a carne, as falências, a multiplicidade dos perfis e dos corações humanos, onde quer que estejam, qualquer que seja sua condição. Nada do que é humano nos escapa ou é sem importância para nós.
Caros seminaristas, investidos em breve do ofício diaconal, penso que já entenderam a lição de hoje. Ser diácono não é o mais importante. O mais importante é ser santo. Não ser diácono, mas encontrar aí um sentido para viver e morrer. Não ser diácono, mas ser Cristo, servo obediente, simples, casto e fiel. Não ser diácono, mas ser portador das misericórdias, das boas novas, da salvação de Deus. Não ser diácono pelas belas vestes, mas pela vida doada e forjada pelas bem-aventuranças. Não ser diácono, mas homem em cuja vida resplandeça as virtudes evangélicas, o exemplo de vida, a consciência reta, as mãos puras e o coração inocente. “Sobre este desce a bênção do Senhor e a recompensa de seu Deus e Salvador” (Sl 23), diz hoje o salmista.
São João de Capistrano, cuja memória celebramos há poucos dias, ensinava: “Quem foi chamado à mesa do Senhor deve brilhar pelo exemplo de uma vida louvável e correta, longe de toda imundície dos vícios”. Caprichem nisso para serem respeitados, ouvidos e estimados. E se não for assim, não vale a pena continuar.
Sejam diáconos como se não quisessem nenhuma outra coisa. Se forem padres, não se esqueçam de que são diáconos. Se forem bispos, não se esqueçam de que isso são apenas degraus, não só do sacramento, mas de subida até o “monte do Senhor”. Sem a marca na fronte, sem a veste branca e sem a palma na mão, não haverá bem-aventurança. E estes sinais nós os adquirimos na missão pastoral e sacerdotal de cada dia, na diaconia da vida, da Palavra, do Altar, dos irmãos. Renunciem às aparências, aos holofotes, aos acessórios e tomem a cruz de cada dia atrás do Divino Diácono. É por causa d’Ele que serão diáconos e por causa daqueles a quem Ele os enviar.
Como diáconos da Igreja e para a Igreja, vocês devem distinguir-se pelo cultivo orante e pelo anúncio alegre e testemunhal da Palavra de Deus; pelo trato santo e piedoso com o Altar, que é o trono do Cordeiro; pelo amor misericordioso e solícito na direção de todos, sobretudo dos mais pobres e vulneráveis da terra. Isso os fará santos. Ser santo é meta e fim. Ser diácono é caminho e meio. Se ser santo não for a meta de vocês, não servem e não são dignos do diaconato. Se o diaconato não os fizer santos, então gastaram em vão seus estudos, suas vestes, seus discursos, seu tempo. A Igreja quer vê-los como homens de Deus, administradores dos mistérios de Deus, abençoadores, portadores de palavra boa e bendita, encarnação da misericórdia do Pai e do amor samaritano de Jesus. Queremos vê-los diáconos com o odor de Jesus. A Palavra a ser anunciada é a d’Ele e Ele mesmo, que é o Verbo. O Altar é d’Ele e Ele mesmo, que é o Cordeiro. A caridade a ser vivida na direção dos irmãos é comunhão com Ele, que habita em cada um, e que torna nosso amor e nossa religião verdadeiros.
Que os santos que foram diáconos na Igreja e estão no céu sejam-lhes favoráveis na intercessão: Estêvão de Jerusalém, Efrém de Nisibi, Lourenço de Roma, Vicente de Saragoça, Francisco de Assis… Quem sabe um dia vocês estarão nesta lista: Flávio de Cajuru, Felipe de Nações, Rafael de Lajinha, membros bem-aventurados da multidão imensa de gente que ninguém pode contar diante d’Aquele sentado no trono e do Cordeiro. São Bernardo ensinava: “Os santos não precisam de nossas homenagens, nem lhes vale nossa devoção. Se veneramos os santos, sem dúvida nenhuma, o interesse é nosso, não deles. […] Assim, aquilo que não podemos obter por nós mesmos, seja-nos dado pela intercessão deles”. Que os santos no céu por terem sido diáconos aqui na terra, intercedam por vocês que iniciam este ministério que os pode fazer santos também. Este é nosso desejo mais profundo aos três. Mas, antes, vivam com alegria, profetismo e coragem evangélica o ministério diaconal entre nós, no tempo da tribulação. Está posto o caminho! Está posta a meta! Está posta a missão!
Que Maria, diaconisa do Verbo e missionária de amor apressado, seja a primeira e mais atenta intercessora no caminho único de santidade que cada um fará, encarnando em si uma fração do Evangelho do Cristo neste tempo atordoado por pandemias e crises múltiplas, e que carece do fermento do Reino e do nosso testemunho de fé. Amém.
Dom José Carlos de Souza Campos
Bispo Diocesano de Divinópolis-MG